O discurso final do último episódio da sétima temporada de The Walking Dead é sobre escolhas – e a natureza exclusiva das escolhas é bastante conveniente para analisar The First Day of The Rest of Your Life (S07E16).
A frase “cada escolha, uma renúncia” já se tornou clichê, mas ainda é absolutamente correta. Escolher é sinônimo de trocar, preferir uma coisa em detrimento de outra, lidando com as consequências disso depois. Ao longo (longo mesmo) deste season finale, The Walking Dead toma várias decisões que trazem consequências positivas e negativas – e o valor que o espectador dá para estas é o que define a qualidade do episódio.
Para ilustrar o que quero dizer, um exemplo mais geral: tiroteios dificilmente matam personagens importante. É muito comum no cinema que, uma vez que o protagonista entre em fogo cruzado, ele ganhe uma armadura mágica de roteiro. Talvez ele leve um tiro no braço ou no abdômen, mas uma bala perdida muito provavelmente não vai atravessar sua cabeça. Isto acontece por dois motivos principais.
Primeiro, estar sob uma saraivada de tiros é um situação tensa – e ação geralmente é sobre tensão. A frequência desse recurso, porém, criou um clichê tão grande que virou piada e agora basta um tiroteio durar um pouco mais para trocarmos o “Tomara que ele não seja acertado!” para “Nenhum desses capangas sabe atirar?”. Esta consciência do recurso nos tira da história e torna mais difícil o objetivo de nos deixar temerosos pela segurança do protagonista – no caso específico de The Walking Dead, eu fiquei muito mais preocupado com Shiva e Negan do que com próprio o Rick.
O segundo motivo que gera essa superproteção nos tiroteios é a necessidade de peso dramático. A morte de um personagem importante precisa ser tratada com importância – imagine se Han Solo fosse acertado em cheio em um dos tiroteios contra os Stormtroopers. Em The Walking Dead, Denise pôde morrer por uma flecha que veio do nada, mas Glen precisa de uma morte a altura, gerando um drama que se estendeu do começo ao fim da temporada – Abraham, por outro lado, estava no meio termo, ao menos na série. E é sobre isso que eu quero começar falando.
That widow is alive, guns a-blazing!
A temporada começou com duas mortes importantes no episódio mais graficamente violento em todas as temporadas. Tentando criar um senso de unidade para esse ano da série, a escolha dos produtores foi contrastar o começo sombrio e cruel com um final empolgante e esperançoso, além de focar o episódio em homenagear Glen e Abraham.
O militar ruivo nunca foi um personagem particularmente complexo e seu desenvolvimento era desinteressante, principalmente por ter se tornado apenas romântico no fim de sua vida. O coreano, por outro lado, era um personagem chave e tinha uma personalidade muito identificável e envolvente – Glen era o garoto comum que trabalhava entregando pizza e conseguiu adaptar suas habilidades e conhecimentos para o apocalipse de maneira crível, de modo que ele representa a boa parcela do espectador que não é especialmente boa com armas de fogo, katanas ou sobrevivência na selva e nem carrega um alter-ego psicopata para situações extremas – ele era humano sem se tornar uma vítima fácil.
Assim, no momento em que The Walking Dead escolheu homenagear esse personagem tão querido, veio junto a responsabilidade de fazer o mesmo com o outro falecido – e, por consequência, dar foco para sua companheira. Essa, aliás, é uma consequência da decisão anterior de fazer duas mortes para conseguir chocar o público, que por sua vez é consequência da decisão de fazer o cliffhanger cretino da temporada passada, mostrando que, em roteiros seriados, saber lidar com escolhas erradas do passado é um dos trabalhos mais importantes e envolve uma humildade que a série parece não possuir plenamente.
O ponto é, temos Sasha, a viúva de Abraham, como o fio condutor da primeira metade do episódio. Ela surge no escuro tendo flashbacks do último dia que passou com o namorado e isto cria no episódio um senso de mistério que funciona, principalmente quando começa a envolver outras memórias, com Maggie, Eugene e o próprio Negan. O recurso é bom e, embora as memórias com Abraham se tornem redundantes em certa altura, não é uma execução terrível; o maior problema está na relação em si.
O romance dos dois nunca foi um ponto relevante para a história geral da série e nasceu de forma artificial para dar algum arco para Abraham, Sasha e Rosita, que ficariam em inércia sem isto. A relação durou poucos episódios, ganhando alguns minutos de tela aqui e ali, e os dois atores sequer têm uma boa química – e nem havia como terem. Eram dois personagens secundários e desinteressantes, não havia tempo ou estofo para desenvolver um romance crível como a do outro casal.
Desde a segunda temporada, Glen e Maggie tem uma relação construída nos detalhes, com uma delicadeza rara – mais que isso, a relação deles já envolveu pontos chave do plot, como quando os dois foram presos e torturados em Woodbury ou quando se separaram e a busca de um pelo outro se tornou o motor central de seus núcleos. Por isso que, se fossem Maggie e Glen nos flashbacks desse episódio, o peso emocional do “reencontro” seria muito maior – e por isso que o plano de encerramento foi o relógio que simboliza essa relação, e não o colar que simboliza a outra.
A decisão de trazer o tom para uma nota emocional depois da batalha serviu não só como um drama qualquer – embora a montagem e o discurso possam soar piegas para alguns -, mas validou a morte de Glen como a mais importante de toda a série. É nisto que o discurso é pautado, na percepção da importância de Glen para a História (no sentido acadêmico) deste novo mundo, algo difícil para a audiência notar por conta própria. Se a sociedade de Rick se desenvolver e evoluir até alcançar o status de civilização novamente, Glen será lembrado como um herói, um mártir e uma figura histórica – e isto é transmitido pelo discurso, que se torna não só uma emoção, mas uma reflexão.
You ever hear the one about the stupid little prick named Rick who thought he knew shit but didn’t know shit and got everyone that he gave a shit about killed?
Em certo momento do episódio, o grupo que apoiava Rick (oficialmente chamados de Hipsters) se volta contra ele em um ato de traição surpreendente, mas não inesperado. Este grupo soou deslocado desde o começo, como aqueles clássicos vilões fillers de anime que surgem de uma possibilidade inexplorada do material original e vão fundo neste conceito. Eles não existem na obra fonte de Robert Kirkman e são realmente interessantes como conceito – desenvolveram uma linguagem ligeiramente diferente, tem um código moral próprio e são beneficiados com um ótimo design de produção que os faz usar roupas excêntricas, carregar guarda-chuvas e usar bicicletas como meio de transporte, algo bizarramente coerente em um mundo sem recursos. Mesmo assim, são filler e a relevância deles na história sempre foi questionável.
A série nunca mostrou o grupo de Negan por inteiro e, mesmo se o grupo do lixão nunca aparecesse, poderíamos acreditar que as três comunidades principais têm os números necessários para vencer a guerra. Os Hipsters pareciam uma decisão para encher linguiça e, uma hora ou outra, precisariam servir para algo. Esse algo foi a traição.
A decisão foi, na verdade, para aumentar a desvantagem de Rick e tornar sua volta por cima mais empolgante – as consequências disso, porém, foram fatais para a lógica do episódio. A partir do momento que todos os Hipsters tinham o grupo de Rick sob sua mira, se tornou difícil acreditar que haveria uma chance de virada, ainda mais com tão poucas mortes. A narrativa comprou tensão a preço da credibilidade da ação e se trata de uma decisão problemática, sim, mas é importante notar que, para o episódio, a tensão era claramente mais importante do que a credibilidade lógica, o que não redime o ônus da troca, mas justifica-o de alguma forma.
Afinal, é difícil manter-se absolutamente lógico quando temos uma tigresa como aliada.
A Goddamn Tiger!
Enfim chegamos a melhor parte do episódio. Rick se vê ajoelhado diante de Negan em mais uma tentativa dos produtores de dar unidade a temporada, inspirando a cena naquela que apresentou Negan – até a fotografia foi recriada. A novidade é que Rick manteve-se firme diante das ameaças, deixando claro que prefere morrer do que perder sua liberdade, um conflito que não deve voltar nunca mais para o personagem.
E então ele é salvo por uma tigresa.
Embora o que venha a partir desse ponto seja bastante absurdo – e empolgante -, a construção da cena em si funciona bem. Enquanto Rick está sob ameaça, vemos cenas de Michone sofrendo para vencer uma luta (contra uma personagem aleatória, infelizmente), o que nos leva a acreditar que as duas ações possuem alguma relação e a suposição mais óbvia é imaginar que Michone fará algo para ajudar Rick.
Essa inserção serve para desviar nossa atenção e, nos fazendo pensar em Michone, a série não permite que percamos tempo pensando em outras soluções para o problema de Rick, como se acostumasse nossos olhos a escuridão para acender todas as luzes ao mesmo tempo no momento seguinte. É por isso que a cena de Shiva salvando Rick surpreende e empolga tanto – nossa mente não estava calibrada para o absurdo fantástico que viria.
É preciso lembrar do absurdo disto, aliás. Uma tigresa que ataca sob comando, avança apenas nos inimigos e não leva nenhum tiro dos vários Salvadores que ficam apavorado com ela – mais uma vez, sacrificando a lógica para ter um momento de empolgação. E o que vem a seguir é pura euforia sem a menor seriedade ou consequência, num nível digno de filmes de super equipes da Marvel, onde vários personagens estilosos se unem e os únicos que morrem são figurantes aleatórios.
Há, sim, um ponto a ser feito em defesa da infantilidade que tomou a série de assalto, indo longe demais no contraste com o começo visceral da temporada. Mesmo assim, é uma decisão com pontos positivos, conferindo um senso de heroísmo fantástico para os personagens e empolgando qualquer espectador que esteja disposto a se deixar levar pelo absurdo brega – repito, é uma tigresa comendo pessoas, levar isso a sério demais seria um erro maior ainda.
Aliás, a própria série comete esse erro mais cedo no episódio, jogando um ou dois figurantes aleatórios mortos no chão da cidade e depois gastando um punhado de frames para mostrar um velório destes em uma tentativa patética de criar um drama que simplesmente não existe para mortes que ninguém se importa. Isto só revela a hipocrisia do episódio ao não aceitar a breguice e futilidade intrínseca de sua decisão pelo absurdo, manchando a empolgação de seu desfecho com uma seriedade artificial e fora de hora.
We are going to war!
Portanto, este finale tem seus méritos como episódio, mas sofre com o peso das escolhas de uma temporada conturbada que teve episódios interessantes individualmente, mas falhos quando analisados em conjunto. Isto claramente se deve a decisão de fazer muitos episódios focados em um personagem só ou grupos isolados, excluindo a necessidade de criar uma unidade temática entre narrativas diferentes, como Game of Thrones faz, e (provavelmente) economizando nos atores, já que estes só devem ser pagos pelos episódios em que aparecem. É uma escolha consciente, mas problemática, e The Walking Dead precisará lidar melhor com as consequências dela para manter o mínimo de dignidade no resto de sua jornada – até aqui, não me arrependo da decisão de acompanhá-la, mas já não me orgulho.
Eu realmente não sei mais se quero ver series longas. Até The big bang que vejo sem pensar em nada só para rir junto com a claque já me parece com um tio velho. The walking dead me parece com o tio velho que só lembra de outros tios velhos mortos.
Eu ia comentar, mas lembrei que seria ignorado. Snif… O que teve de errado com meus comentários?
Leio sempre os comentários, mas nem sempre tenho uma boa tréplica. O texto em si geralmente já tem todas as minhas respostas.
Entendido.