The Walking Dead: “New Best Friends” – Personagens e suas Relações

O trabalho de criação de personagens não é simples. É o mesmo que criar uma pessoa do zero, alguém que realmente poderia existir, com uma personalidade própria, manias, dúvidas, certezas, qualidades e, principalmente, defeitos. Esse último é ainda mais difícil quando se trata de um herói, alguém que deveríamos gostar e confiar.

Os mesmos desafios valem para a construção de relações. Depois de criar duas pessoas que poderiam existir e colocá-las na história de forma interessante, precisamos fazê-las interagir. Essa tarefa é tão difícil – senão mais – quanto criar indivíduos, já que todos possuímos acesso irrestrito a matéria-prima, nossa própria individualidade, e conseguimos perceber com auto-reflexão o que nos torna humanos reais e inserir isso na criação, enquanto nossas relações são mais difíceis de mensurar. Nunca somos completamente honestos com quem nos cerca e nunca podemos saber com certeza quando o outro está fingindo ou forçando, o que faz da dinâmica entre duas pessoas um choque de subjetividades para formar uma relação única e específica – e é esse ponto específico que um autor deve buscar ao construir relações.

The Walking Dead, série da AMC transmitida simultaneamente no Brasil pelo canal FOX, ofereceu no episódio do último domingo, apropriadamente chamado “New Best Friends” (S07E10), um exemplo deste árduo trabalho de criar pessoas e suas relações por meio da dupla Daryl e Carol. A construção gradual e crível das relações pessoais está entre as características mais fortes da série, logo atrás da inconstância de qualidade. Haverão spoilers (relativamente leves) abaixo, mas duvido que alguém que não tenha começado ainda pense em fazê-lo a essa altura. E não recomendo.

Comecemos individualmente. Daryl (Norman Reedus) foi apresentado na primeira temporada junto de seu irmão, Merle (Michael Rooker). Merle surgiu como o estereótipo “white trash” – basicamente um caipira violento, ignorante e racista. Pela forte relação que tinha com o irmão mais velho, Daryl parecia uma extensão disso, mas logo ganhou liberdade para se desenvolver por conta própria e se mostrou o tipo “bruto de bom coração”. Um de seus primeiros atos de bondade foi a busca incessante da filha perdida de Carol (Melissa McBride).

Ela, por outro lado, foi apresentada como uma dona de casa doce e fragilizada. Era agredida pelo marido (spoiler dos grandes a frente (mas sete temporadas é muita coisa, deixa pra lá, vai)) e, logo depois dele morrer, sua filha leva um tiro na cabeça na frente dela, perdendo tudo que a definia como personagem. Temos aí um momento importante de decisão por parte dos roteiristas. Carol não era uma das personagens centrais e suas perdas poderiam ser uma desculpa para fazê-la ficar para trás em alguma fuga do grupo e, aos prantos, ter sua pele dilacerada por zumbis em uma das clássicas cenas gore de The Walking Dead. Porém, a decisão foi de fazer das perdas o primeiro ponto para um arco que vem sendo construído desde então.

O caso de Carol é muito específico, pois ela vive em uma área muito particular na escala de importância dos personagens de The Walking Dead. Rick, Carl, Michone e até o próprio Daryl são personagens realmente centrais – como diz Michone, eles são “aquele que sobrevivem” – e isto coloca um alvo para os vilões em suas cabeças e os força a trazer o espetáculo para a série – para exemplificar, só na última temporada, Carl invadiu uma base fortemente armada sozinho, Rick enfrentou um super-zumbi digno de video-game, Michone fez uma barreira usando zumbis mortos por ela e, voltando algumas temporadas, Daryl lutou com um tanque (e venceu). Carol, por outro lado, não é um grande alvo, nem para os vilões e nem para a espetacularização. Sim, ela já passou por problemas e, com certeza, ela já teve seus momentos badass, mas não é isso que a define. Pelo contrário, isto parece distante de quem ela era – ou de quem ela queria ser.

Em um ato de muita auto-consciência, a série usou isso como um conflito – e devo pontuar aqui que a série demonstra bons momentos de genuína auto-consciência, como a já citada frase de Michone sobre ela e Rick serem os que sobrevivem, algo que beira a metalinguagem em uma produção com um RH tão ativo. Carol se vê em meio a estes assassinos natos – que a série chama de “mocinhos” – e descobre suas semelhanças com eles, apenas para perceber em seguida suas diferenças.

Primeiro, Carol começa demonstrando um forte espírito de combate e um pensamento pragmático que flerta com a sociopatia. Ela assassina pessoas doentes para que um vírus letal não se espalhe, mas dá o azar de seu líder, Rick, estar em um de seus momentos pacifistas e é expulsa do grupo, descobrindo os benefícios e malefícios do isolamento. Vale apontar que, ironicamente, assassinar pessoas com um vírus contagioso para evitar infecções é basicamente a definição de “matar zumbis”, algo que Rick e seu grupo vem fazendo sem culpa desde sempre.

Carol compreende que a partir do momento que ela se tornou uma assassina como os outros, não há mais barreiras morais a sua frente e os fins passam a justificar os meios, enquanto Rick tenta compreender os próprios limites em crise após crise, deixando pessoas morrerem no processo. Obviamente, ele é o protagonista e seus conflitos são o que mantém a história viva, uma preocupação de roteiro que não existe para Carol.

Mas é depois disso que o conflito dela se torna realmente fascinante. Ao contrário de Rick ou Daryl, que evoluíram ao ponto de se tornarem novos personagens em comparação com quem eles eram na primeira temporada, Carol ainda carrega, de forma sutil, aquilo que a definia. Ela carrega a dor de perder a filha, as agressões de seu marido e sua persona de dona de casa doce e inofensiva, inclusive assumindo essa persona de forma falsa e atuada para parecer mais frágil do que realmente é e surpreender seus inimigos.

Porém, depois de matá-los com facadas e tiros de metralhadoras, ela não se sente triunfante; se sente mal em ter que matar para viver e revela que não há uma verdadeira Carol, a dona de casa inofensiva não é simplesmente uma máscara que ela veste quando é conveniente, e tampouco é a assassina. Os dois lados convivem dentro dela e seu conflito existe pela dicotomia entre sua enorme capacidade como assassina e sua dolorosa busca por serenidade.

Dito isso, chegamos ao episódio em questão e a relação entre Carol e Daryl – ou como os shippers diriam: “Caryl”. Acho importante dizer que, mesmo com o massivo apoio do público a uma relação amorosa entre os dois, a série se mantém firme em evitar esse caminho fácil, criando algo muito mais complexo e real.

No episódio, os dois se reencontram depois de Carol fugir e tentar se isolar do grupo. Acontece que, depois de sua fuga, seus amigos, que basicamente eram sua nova família, são atacados por um grupo mais poderoso, e dois deles são mortos brutalmente.

Aqui preciso de mais um pouco de background do Daryl para seguir. Seu conflito base é paralelo ao de Carol, mas acontece no caminho contrário. Ele sempre foi forte, desde o começo, e seu arco foi exatamente de criar relações, sentir-se parte de uma família e abrir, aos poucos, seu coração duro. Mas, mesmo evoluindo nesse sentido, ele continuou bruto e sutileza ou sensibilidade são qualidades que passariam longe de serem atribuídas ao personagem. Sua mente parece incapaz de lapidação de ideias, de modo que, se ele está com raiva naquele momento, ele vai dar um soco em alguém, mesmo que armas estejam apontadas para ele e todos os seus amigos – e é importante pontuar que ele teve a chance direta de mentir para Negan (líder do grupo inimigo), facilmente se infiltrando como um espião, e decidiu não fazer por simples incapacidade de tomar ações calculadas e meticulosas como mentir e jurar uma lealdade falsa.

Então temos essa situação: Carol está vivendo sozinha em uma casa e é surpreendida pelo amigo, que está às portas de uma guerra contra o grupo inimigo e sabe da capacidade de combate dela. Eles sentam para conversar e ela explica o motivo de ter fugido: Estava perdendo sua essência e, se tivesse que continuar matando para proteger aqueles que ama, acabaria por deixar de ser quem era. Com lágrimas nos olhos – e Melissa McBride sabe criar drama de forma precisa – ela pergunta se o grupo inimigo havia agido e se alguém havia se ferido.

The Walking Dead já teve momentos de tensão dignos de nota. Mesmo nesse episódio, a batalha de Rick contra o zumbi dos espinhos foi relativamente tensa, ainda que um pouco ridícula, mas há tempos a série não me fazia ficar na ponta do assento como nos segundos entre essa pergunta e a resposta de Daryl. Talvez a maioria do público tenha achado os momentos envolvendo Negan ou aquele com os explosivos na estrada muito mais envolvente do ponto de vista de tensão, e mesmo parte do meu interesse pela cena foi técnico, e não sentimental, mas é preciso notar que o drama que se criou foi forte e coerente com os dois personagens.

Carol, pela qualidade da atuação de McBride, era o foco da cena, mas o verdadeiro protagonista ali era Daryl. Ele tinha um dilema forte a sua frente, precisava decidir se escolhia sacrificar a vida pacata e a alma de sua grande amiga para o bem de seu grupo na vindoura e irremediável guerra ou se mantinha a ilusão na mulher e permitia que ela continuasse ali, livre em sua vida perfeita e isolada dos problema exteriores. O problema é que essa última opção envolvia mentir e calcular, pois os inimigos haviam, de fato, atacado e pessoas haviam se ferido, algo que tornaria a opção quase impossível de acontecer dada a personalidade insensível e bruta de Daryl.

E foi isso que me fez tremer de ansiedade. O roteiro tinha um conflito claro, mas muito complexo, ao colocar a possibilidade de fazer o personagem agir de uma forma que ele nunca agiu antes. Uma regra simples a se seguir na construção de personagens é mantê-lo coeso – se ele tomou uma decisão baseada em sua personalidade, quando uma situação parecida surgir, ele deve agir com as mesmas bases – mas The Walking Dead conseguiu conceber uma decisão muito mais humana ao fazer o personagem tomar a decisão que contradiz quem ele é para nos apresentar algo novo sobre ele como personagem – ou como pessoa.

É o mesmo tipo de decisão corajosa que tomaram com Carol há algumas temporadas atrás, ao desenvolver nela novas facetas e manter as facetas antigas presentes, contrapondo os dois lados para gerar uma contradição, do tipo que não enfraquece a caracterização, mas fortalece a credibilidade da personagem como um ser humano. Ao quebrar a regra estabelecida para a ação dos personagens, o roteiro se permitiu aprofundá-los de forma orgânica e envolvente.

Daqui pra frente em The Walking Dead teremos altos e baixos – como sempre ocorreu – e, com isso, a personagem de Melissa McBride corre um grande perigo. Por suas decisões e o teor conclusivo que seu arco vem ganhando, ela deverá morrer logo, de uma forma ou de outra. Ou seu arco fecha de maneira coesa, com um último retorno a violência seguido da morte como parte de um auto-flagelo motivado por sua culpa católica; ou o foco que ganhou irá alçá-la ao panteão de protagonistas e a tornará menos sensível a tal violência. Isto, entretanto, seria um tipo ruim de contradição, criada a partir de outra já estabelecida, e a perda de sua identidade pacífica seria o mesmo que a morte para alguém que se encontrou ao parar de tentar ser quem não era.

Aos corajosos sobrevivente que acompanharam The Walking Dead até aqui, deixo duas sugestões de conteúdo de análise que podem realçar a experiência de assistir cada episódio. A primeira vem do site AV Club e seus ótimos textos, com reviews coerentes e de uma rara qualidade analítica, lançados sempre após a exibição do episódio. A outra é o canal do Youtube New Rockstars, com vídeos semanais compilando todos os simbolismos, easter eggs, dicas e detalhes de produção, com um foco bastante objetivo e técnico, mas ao mesmo tempo divertido e dinâmico. Ambos são em inglês, mas os vídeos do canal tem muitas imagens e usam uma linguagem bem simples, sendo uma boa pedida pra quem quer começar a experimentar conteúdos gringos. 

5 comentários

  1. Eu adoro os textos do Loadnero (também os vídeos) e mesmo eu não gostando nada desta série (nem dos quadrinhos) gostei muito da analise. Deu até vontade de ver (o que não farei pois tenho que ter um respeito próprio).

  2. Sensacional o texto, a cena em questão, fez meu coração bater mais forte, Carol e Daryl são personagens magníficos, e mesmo em uma torrente de cagadas narrativas da serie nos últimos tempos, eu me emocionei.
    TWD esta entre as minhas series favoritas, esse mundo apocalíptico já me gerou muitas indagações sobre ética e moral. Comecei a comprar e ler a edição nacional da HQM editora, mas por prioridades no momento, só li os 4 primeiros álbuns.

  3. Bravo!! TWD ta repleto de episódios focados nesse tipo de desenvolvimento com uma profundidade absurda. E eu ainda tenho que aturar gente que só se sente satisfeito em momentos de ação.

  4. É por causa de episódios como esse que nunca vou deixar de assistir à série. Apesar de toda a controvérsia, um fato é que ela desenvolve seus personagens muito bem e é bastante ousada quando se trata de adaptar as HQs; e tem que ser, porque, se não fosse assim, não teríamos coisas como a Carol, que é incontestavelmente superior à sua versão em preto e branco.
    Sem contar o “foda-se” que o seriado dá para algumas pessoas. Porque, pelo que se vê, a opinião da maioria sobre ele é muito relativa e polarizada. No início desta temporada, por exemplo, era tipo: “Nooooossa, melhor série!”, “Valeu a pena acompanhar até aqui, hein?”. Uma semana depois já estava assim: “Porra, que lixo, hein?”, “Aff, não sei por que ainda vejo essa merda!”. Mas, independentemente de como está sendo a reação da maior parte do público, os produtores continuam no caminho que eles escolheram. E isso é uma qualidade que admiro porque eles não fazem as “cagadas” que fazem de propósito (o que deveria ser óbvio, mas parece que não é).
    Claro que o que eu disse não justifica todos os erros da série, mas para mim é o bastante para continuar, sem esperar que ela seja um Breaking Bad ou qualquer outra série extraordinária que te deixa mal acostumado…

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