Leléologia – Recortes e Perfeição

Já foi dito que o trabalho de um editor é ingrato. Particularmente, com a minha personalidade, ele tende a se tornar ainda mais cruel.

O processo de edição é um processo de criação, isto é fato, mas diferente de outros processos artísticos, a edição precisa lidar com muitos detalhes que tem como objetivo passar despercebidos pelo observador. O editor precisa criar uma ilusão de vida, basicamente como o arquiteto da Matrix – na Matrix, tirando aqueles que possuem um conhecimento sobre a natureza falsa do mundo, ninguém irá procurar por erros ou incongruências no que veem, mas quando essas incongruências existirem, toda a ilusão vai de desfazer. Só que editor não tem nenhum Agente Smith pra resolver esse problema quando ele acontece.

E eu sou um perfeccionista. Um perfeccionista que é péssimo em tomar decisões, basicamente porque é difícil conceber que duas coisas não-perfeitas podem ter diferentes níveis de qualidade – se não é perfeito, é tudo igualmente um lixo. Assim, o processo de edição se torna cansativo pela quantidade e dificuldade das decisões que eu preciso tomar, além do desgosto de abandonar um elemento ou uma sessão do vídeo sabendo que eu poderia deixá-la perfeita se eu gastasse mais algumas horas nela.

O exemplo mais forte desse conflito é o recorte das imagens. Para os não iniciados, os elementos que aparecem na tela precisam ser recortados com uma ferramenta do programa que envolve pontos-âncora e linhas de corte. Os pontos e as linhas podem ser movidos e encurvados para encaixar com as bordas do elemento, criando uma máscara em volta dele e apagando o que está ao redor. Isso provavelmente é o que toma metade do tempo de edição – posicionar e encaixar os pontinhos – principalmente quando envolve vídeos, onde o processo precisa ser feito frame por frame; digo, se quiser um resultado satisfatório e imperceptível.

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Entretanto, devo dizer, eu gosto bastante dessa parte. Não converso com muitos editores, o que é uma pena (me chama no twitter @loadnero, vamos conversar, quero amigos, eu sou sozinho), mas consigo ver um editor profissional achando essa parte extremamente entediante. Mas eu adoro, é o momento onde eu posso parar de ouvir a minha voz irritante, colocar uma música do Postmodern Jukebox e brincar de ligar os pontinhos. É uma diversão, mas toma muito mais tempo do que devia. Me perco em detalhes mínimos dos contornos, checo duas ou mais vezes a posição de cada pontinho e quando a imagem tem elementos pouco delineados, como fios de cabelo solto, eu testo várias maneiras de recortar, cortando o cabelo totalmente, tentando pegar só alguns fios e outras bobagens que ninguém vai realmente se importar no fim das contas.

Sabendo que eu ia precisar gastar muito tempo em pequenas animações e composições visuais com vários elementos na tela, eu decidi mudar o estilo de recorte no meu último vídeo. Esse vídeo já era diferente dos outros no conceito, falando sobre temas que eu ainda não tinha abordado, então eu queria criar essa separação visualmente também. Junto de outros elementos, o estilo dos recortes serviu esse propósito. Mas como um perfeccionista que se diverte fazendo recortes precisos nas imagens conseguiu usar um estilo tão rudimentar e imperfeito como esse?

Primeiro, eu me convenci que era um estilo. Assim, pude criar a animação e toda composição visual do vídeo baseada nisso; tratei as imagens literalmente como pedaços de papelão recortados e colocados sobre uma superfície, com sombras e movimentos manuais, evitando efeitos mais “líquidos” ou “gasosos” – os que soam menos físicos, como fades ou dissolves. E, segundo, encontrei uma ordem no caos. Mesmo que as imagens tentem passar a ideia de que foram recortadas por crianças fazendo um trabalho de artes da escola, eu gastei algum tempo testando modos de deixar as bordas com esse aspecto, tentando equilibrar uma aparência grosseira com alguma suavidade – evitei deixar curvas pontiagudas, por exemplo, embora aqui e ali tenha sido necessário.

Uma grande inspiração pra esse estilo foi o canal The School of Life, mais especificamente os vídeos da série Literature como esse ótimo sobre George Orwell.

Eu acreditei que essa decisão de abandonar os cortes precisos, ao menos para esse vídeo, poderiam diminuir algumas das preocupações – se o recorte ficar imperfeito, ótimo, porque essa é a ideia. Porém, ainda havia o mesmo sentimento de incompletude em alguns momentos, como se houvesse uma imperfeição perfeita, uma tosquice que parecesse realmente intencional e não apenas malfeita. E encontrar essa qualidade visual não era uma tarefa tão mais fácil, embora fosse mais rápida do que recortar com total precisão.

É aí que o verdadeiro conflito chega. Eu considero esses vídeos uma expressão artística – inclusive acho bastante óbvia a afirmação de que todo conteúdo audio-visual do youtube e plataformas parecidas são arte, independente de sua qualidade como tal – e meu objetivo é produzir uma obra-prima toda vez. Claro que se trata de uma ambição inalcançável – ou quase inalcançável – porém, se todos os artistas tentassem fazer suas próprias obras-primas a cada trabalho, talvez estivéssemos em um mundo com um nível intelectual e cultural muito mais alto. Ou talvez simplesmente em um mundo muito mais prepotente, o que não me desagradaria.

Em contra-partida, essa vontade de encontrar a perfeição na produção torna produção em si muito mais demorada e, possivelmente, impraticável. Se cada 3 segundos de vídeo precisassem ser os melhores 3 segundos que eles poderiam ser, eu provavelmente gastaria meses em cada um destes 3 segundos, testando inúmeras possibilidades até encontrar a perfeição – e eu ainda teria que tomar a decisão de aceitar que essa é a verdadeira perfeição, o que não iria acontecer.

No meu mundo perfeito, todos os artistas teriam tempo indeterminado para produzir e não precisariam se importar com quantidade, mas sim com qualidade. Cada detalhe deveria valer a vida do criador, sob a filosofia de que uma corrente é tão forte quanto o seu elo mais fraco. Mas esse mundo pode nunca ser possível. E eu aceito isso.

Felizmente, durante meu processo, sempre chega o momento onde eu consigo priorizar a produtividade em vez da perfeição. O sentimento de tomar uma decisão é sempre terrível, mas eu não acabo o vídeo decepcionado como outros editores, basicamente porque, ao assistir o produto final, eu encontro uma harmonia nas decisões que tomei e vejo nas imperfeições uma identidade própria de algo que saiu de mim, mas que tomou uma forma que eu não havia antecipado. E esse é um sentimento reconfortante e refrescante.

E, como na Matrix, os usuários provavelmente nem vão dar atenção aos detalhes da ilusão que lhes é apresentada e nunca saberão dos conflitos por trás dela. Essa é a missão do criador: produzir um universo completamente artificial, mas que se apresente de forma trivial e imperceptível. No entanto, quem leu esse texto até aqui escolheu a pílula vermelha.

Lembre-se, tudo que eu ofereço é preciosismo obcecado. Nada mais.

5 comentários

  1. Muito bom Leonardo. Entendo como é esse sentimento, de querer deixar tudo perfeito. Por muito tempo eu não consegui produzir nada devido a isso (não somente a isso, claro). Se eu escrevia uma página para um livro, acabava reescrevendo ela umas 20 vezes, até desistir do livro. Até mesmo arrumar a casa era um processo lento e trabalhoso.

    É… E esse comentário será imperfeito, mal formado e sem conclusão.

  2. Eu sei como é esse sentimento de perfeccionismo, quando fiz estágio em uma gráfica, lugar onde aprendi a editar imagens, o dono dela vivia me pedindo para não ser muito detalhista na edição para poder entregar mais rápido, isso me incomodava muito. Estou testando algumas coisas de edição de vídeo para fazer algo de analise semelhando aos seus vídeos, até agora ainda não fiz o primeiro video por não estar achando perfeito o resultado, mas sei que não finalizar ele alguma ele nunca vai sair.

    • Acho que se tu pensar nas consequências de um conteúdo imperfeito (ou até ruim mesmo) e no tempo limitado de vida que tem, fica mais fácil tomar uma coragem, mesmo que momentânea, pra acabar esse projeto. Foi assim que eu consegui lançar o primeiro vídeo, que ficou não só imperfeito, mas bem ruim.

  3. Finalmente reservei um tempo pra conseguir ler o post…

    Sobre perfeccionismo, isso é natural enquanto trabalho autoral, mas em trabalho profissional dentro de uma empresa, onde temos prazos apertados e clientes com demandas bizarras, isso inevitavelmente tem que ser posto de lado em prol de uma boa produtividade com resultado satisfatório.

    Fui (ainda sou na verdade) editor de vídeo mas atualmente trabalho com pós produção. Se tu acha complicado ser editor, onde a linguagem fica a teu cargo, podendo escolher um caminho “mais fácil”, quando entramos na pós produção que o bicho pega, já que deixar algo bonito é muito subjetivo.

    Enfim, eu gosto muito dos teus vídeos e tirando o áudio baixo do primeiro, o que interessa está sendo muito bem feito, que é passar uma mensagem, uma ideia. O estilo visual pode agregar ou não, mas de nada adianta ser lindo se a mensagem é pobre.

    Um grande abraço e se quiser trocar ideias, só mandar msg no face.

  4. Eses lance de perfeccionismo é um vício, parabéns por “se livrar” em parte disso.

    Eu faço coloração digital, e a primeira coisa é colorir todas as partes do desenho P&B, criando uma coloração chapada básica, apenas delimitando as areas de cores diferentes. É bastante semelhantes ao trabalho de recorte que citou, realmente é prazeroso em parte, me reconheci em você nesse caso.

    Outra coisa, mais insana ainda, é fazer a lineart sobre uma página de mangá. Selecionar todas as linhas do desenho, excluindo as partes do preto chapado características dos mangás. É uma arte, um redesenho.

    É prazeroso de fato, mas o sonho de produzir arte por prazer só pode ser realidade com uma garantia econômica de qualquer jeito, impossível basear a produção em satisfação do produtor.

    Grande abraço

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