A Virtude no Crime

Breaking Bad foi a série mais aclamada pela crítica na história recente da televisão americana. Diferente de The Walking Dead, The Big Band Theory, Game of Thrones ou House, a série de Vince Gilligan não apenas conquistou fãs em sua explosão de popularidade, mas também o fez com a crítica e terminou como uma obra extremamente consistente e poderosa. Felizmente, a popularidade permitiu a produção de um derivado sobre o carismático advogado apresentado na segunda temporada e que ganhou o coração dos espectadores pela divertida personalidade construída pelos criadores e o ator Bob Odenkirk.

Assim nasceu Better Call Saul, uma série de comédia envolvendo os casos do moralmente flexível advogado Jimmy McGill e, principalmente, seu caminho para tornar-se o moralmente corrompido advogado Saul Goodman. A série é produzida pela AMC e transmitida no Brasil pela Netflix em um sistema de exibição bastante raro, com cada episódio saindo junto com o canal americano e não a temporada inteira de uma vez como o serviço é conhecido por fazer.

A repercussão da série, que atualmente tem duas temporadas completas, não chega aos pés do fenômeno cultural e social que foi Breaking Bad, possivelmente porque o derivado pode ser mal interpretado como um caça-níquel irrelevante ou uma continuação que estragaria a experiência do original. As duas visões estão claramente incorretas e basta assistir poucos episódios para perceber que o estilo primoroso de Breaking Bad permanece e, em alguns pontos, é aprimorado. Em uma comparação injusta, mas significativa, as duas primeiras temporadas de Breaking Bad acertavam muito menos que as duas primeiras de ‘Saul.

A fotografia e o design de produção são impecáveis, as atuações são de alto nível e a estrutura narrativa consegue ser apelativa, com cliffhangers frequentes e tramas empolgantes, ao mesmo tempo que sutil e delicada, sem expôr de forma artificial as pistas e soluções. Trata-se de uma experiência cinematograficamente magnífica e, finalmente entrando no tema desta análise, uma expansão muito bem-vinda dos temas do original. Os descrentes ou desavisados devem, sem dúvidas, dar uma chance à Better Call Saul. A partir daqui, o texto é recomendado para aqueles que assistiram Breaking Bad e, de preferência, o spin-off também.

Desde a sinopse, a história de Walter White revela um conflito claro sobre a moralidade da lei. O professor de química, ao descobrir seu câncer, estica sua ética para além dos limites da lei e, com um embasamento honesto, compreende que esta mesma lei não compreende todas as nuances da vida humana e é cheia de falhas, seja por burocracia ou por conceitos primitivas internalizados na sociedade. Dessa forma, a série nos faz acreditar que seu protagonista está correto em fazer o que faz, já que ele é um rebelde. Walter se opõe a um sistema de saúde privado, no pior sentido da palavra, uma vez que o preço do tratamento de Walter é exorbitante, e a uma legislação que força o estado a investir muito em uma guerra contra as drogas que não mostra resultados positivos.

Vendo essa falha no sistema, Walter é convencido, assim como nós, que a hipocrisia da sociedade é única coisa que impede-o de produzir drogas para conseguir dinheiro e salvar o que resta de sua vida e sua família da falência. A série deixa isto claro ao mostrar que o cunhado de Walter, Hank, que faz parte desta guerra às drogas, produz uma cerveja artesanal, uma droga legal, e pode se orgulhar disso sem ser julgado pelo estado ou pela sociedade (veja esse vídeo e ouça essa música). Ao longo da série, notamos que este argumento é deixado para trás por Walter quando ele decide ultrapassar os próprios limites havia criado, e é neste momento que paramos de suportar suas atitudes.

Saul Goodman, inclusive em Breaking Bad, está longe da sociopatia de Walter e se mantém fiel aos seus códigos éticos que, embora ultrapassem a lei, não chegam aos extremos de Heisenberg. E enquanto é Jimmy McGill, em Beter Call Saul, ele é ainda mais carismático e até admirável, aplicando pequenos golpes e dobrando a lei como um artista, algumas vezes por motivos nobres como ajudar idosos que não conseguem lidar com a burocracia jurídica. Jimmy também percebe a arbitrariedade e rigidez da lei, sentindo-se injustiçado pela proclamada Justiça tradicional, criando a rivalidade entre a empresa de seu irmão, que representa a rigidez e nobreza estereotípico dos advogados, e seu espírito livre.

Na segunda temporada de Better Call Saul, o protagonista se envolve com uma empresa de advocacia com os moldes “clássicos”, recebendo um apartamento mobiliado como benefício. Jimmy encontra bolas de sisal decorativas e, depois de perceber que elas só servem para um requinte descartável, ele acorda numa noite e decide brincar com elas, atirando para cima, jogando futebol, basquete e revelando, em uma cena belíssima, seu desdém pelo estilo de vida garboso de seus colegas de profissão. Seu irmão, Chuck, por outro lado, é a definição da tradição e deste tal requinte.

Se mostrando aos poucos o grande vilão da história, Chuck tem atos maldosos que sempre envolvem seu apreço pela postura tradicional de um advogado. Não é coincidência que ele possui uma condição psicológica que o faz acreditar ser alérgico a eletricidade, forçando-o a viver na escuridão e distante de todo tipo de tecnologia e, metaforicamente, de qualquer novidade ou inovação. Mesmo assim, como o Imperador de Star Wars, ele não evita debilitar seu estado de saúde em benefício de seus ideais maléficos. Chuck é a representação desta ordem impassível e destas regras míopes criadas para massagear o ego daqueles que se encaixam naturalmente nelas.

Porém, a moral geral ainda vê Jimmy como o criminoso e, por isso, o incorreto. Para contrastar esse pensamento, a série re-apresenta Tuco logo no começo, um traficante violento e perigoso, mas que se diz justo em seu caos. Jimmy também é contrário a esta violência e se mostra um equilíbrio moral entre os dois extremos, mantendo sua distância do crime violento, mas deslocado entre os defensores da lei. Como Walter no começo de sua jornada, o futuro Saul Goodman encontra sua vocação no tortuoso caminho do meio. Suas capacidades de persuasão, sua dissimulação e sua criatividade só podem ser perfeitamente aproveitadas além das fronteiras da lei.

Estamos acompanhando a jornada de Jimmy enquanto ele entende seu lugar e seu caminho, tentando se encaixar entre os advogados comuns. Embora o glamour lhe chame atenção, não há como lutar contra quem ele realmente é e ser feliz ao mesmo tempo. O crime em Breaking Bad e Better Call Saul revela o pior das pessoas, mas também pode ensinar uma importante lição sobre entender-se e aceitar sua identidade. Walter e Jimmy são casos extremos e que envolvem a lei, mas muitos de nós lutamos contra desejos e vocações que nos parecem difíceis de serem aproveitadas na sociedade em que vivemos. Estes criminosos nos dão um ótimo exemplo de desafio a autoridade ao decidirem usar as armas que possuem. Eles aceitam que seu caminho está entre os maus e se descobrem muito bons nisso.

3 comentários

  1. Concordo plenamente em relação à Better Call Saul, está primorosa e muito longe de ser um caça-níquel ctrl+c e ctrl+v. Tem toda aquela estrutura e macetes visuais e narrativos de BB, mas tem uma leveza própria. O Saul contribui muita para isso.
    Falando dos personagens citados no texto, eu não creio que podemos julgá-los igualmente, pelo menos não levando em conta só seus crimes em duas temporadas. Não diria que um é mais “virtuoso” que o outro, porém, um deles é mais “errado” por assim dizer. Penso que a moralidade das ações deles tem um peso diferente, pelo fato do Saul ser advogado. Eu sei, é um argumento meio bosta mas por mais inofensivo que o Saul seja na maioria seus trambiques, ele costuma distorcer a situação de forma a se favorecer, às vezes cometendo os crimes para ele mesmo resolver. Os problemas de Walter são mais ligados ilegalidade.

    • Eu suporto mais as ações do Jimmy porque ele não comete crimes pesados como assassinato e nem tem o sangue frio do Walter no fim de BB. Pelo esforço que ele tem nas mentiras, é quase como se ele tivesse merecendo o que ganha com elas.

      • Sim, o Jimmy como você ressaltou no texto não tem esses traços de sociopatia do Walter e se mostrou por vezes até generoso. Por isso até disse que a comparação era com o personagem que Walter era 2 primeiras temporadas que era mais afobado que malicioso, sendo seus crimes mais hediondos cometidos por mais medo do que outra coisa.

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