As Fofocas Fictícias

Nós, seres pensantes e sociáveis, temos um fascínio por histórias, principalmente as que são contadas da maneira correta. Quando encontramos amigos, é comum contarmos pequenos causos e trocarmos histórias, seja sobre viagens ou assaltos, aventuras cotidianas, piadas ou fofocas. Isto se reflete em nosso interesse pela arte de contar histórias, dominada por pessoas que sabem quais pontos tocar para gerar interesse, ansiedade e curiosidade. E estes sentimentos geram um fenômeno muito particular e que vem ganhando força com a internet, onde fãs podem se unir e se aprofundar nas histórias que tanto gostam. A reflexão que se segue começou neste texto e serve como sequência lógica dele.

Pessoas apaixonadas por peças de ficção não são novidade, mas vivemos em umçn momento onde isto se tornou um mercado muito forte, tanto para quem produz as obras em si quanto para fãs que decidem criar conteúdo em cima de seus filmes, séries, jogos ou quadrinhos favoritos. Canais voltados exclusivamente para teorizar as possibilidades futuras das obras, que perdem a relevância no momento que o futuro chega; blogs que revisam cada quadro para revelar easter eggs ao seu público, podendo ainda revelar alguns detalhes interessantes de design de produção ou figurino; e sites que literalmente liberam spoilers com dias de antecedência da liberação oficial dos capítulos ou episódios, ganhando audiência sobre a curiosidade desesperada de alguns. E o motivo disto existir é bastante óbvio: O publico compra.

Qualquer fã já se pegou clicando em um vídeo com títulos óbvios como “Coisas que você não sabia sobre…” ou “Os segredos de…”, muitas vezes para descobrir que as coisas não são tão interessantes quanto a curiosidade fez parecer. O mesmo ocorre com a tentação de ler os spoilers de uma série, ignorando o planejamento do autor e a construção de expectativa dele para a revelação. Este tipo de comportamento é muito semelhante a cultura das novelas, onde revistas revelam as surpresas antes e o que importa é apenas a informação e não a forma com que ela é apresentada.

Este comportamento geralmente vem de um entendimento deturpado da ficção em si, quando o observador, num sinal de qualidade no trabalho de imersão da obra, passa a compreender a ficção como realidade e acredita, inconscientemente, que aquilo está acontecendo de fato. A partir daí, os segredos da história ficcional passam a ser fofocas e, como na vida, os eventos perdem o compromisso com conceitos de roteiro ou narrativa. Não se trata mais da experiência proposta pelo autor, basta apenas saber das coisas e se empolgar ou não com as situações.

Isto atinge principalmente obras serializadas, as que conseguem engajar o público de maneira mais intensa, onde os produtores compreendem o fenômeno e brincam com isso para manter sua audiência. Obviamente, não se trata de um problema, uma vez que gerar interesse e curiosidade no público é uma característica importante para qualquer história, seja usando mistérios ou plot twists para isto. Porém, trata-se mais de um enfeite do que o conteúdo em si -como a cobertura de um bolo, sempre importante, mas nunca usada como a base. Estes recursos devem servir o conteúdo de forma natural e nunca usarem a curiosidade do observador para torná-lo refém da história.

Recentemente, na sexta temporada de The Walking Dead, isto se tornou uma discussão quando os produtores usaram cliffhangers e enganações para ludibriar os espectadores. A série claramente não ganhou qualidade pelos mistérios e eles não foram construídos de forma natural, propostos com uso de informações pela metade e cenas pateticamente dúbias. E, para finalizar o desespero da série em criar curiosidade pura e simples, a última cena da temporada é um gancho que piora o ritmo do episódio e grita covardia. O mais alarmante, porém, é que os espectadores caíram nestes joguinhos, quase como uma síndrome de Estocolmo, e muitos gostaram da experiência – inclusive o episódio final bateu recordes de audiência.

Gostar destes momentos apelativos usados nas séries, principalmente quando eles pioram a qualidade da experiência, soa como uma imaturidade por parte dos espectadores. Eu, pessoalmente, consigo compreender esta falta de senso crítico por me lembrar perfeitamente da minha infância onde a qualidade não era um conceito claro. Uma vez que eu estava comprado pela obra, eu iria achá-la boa até o fim, mesmo que minha experiência não fosse tão satisfatória. Por não compreender o processo criativo, minha única referência para histórias eram as que aconteciam ou que eu ouvia na minha vida, e estas histórias eram o que eram, não podiam ser controladas, mudadas ou analisadas. Foi com o tempo e o interesse que veio a compreensão que pessoas criavam aquelas histórias de ficção e, mais importante, elas podiam fazer melhor.

Para os que já estão familiarizados com análises mais aprofundadas e opiniões embasadas sobre as obras de ficção, é possível esquecer que boa parte do público consome arte desta forma, com pouco senso crítico e ignorando a qualidade da experiência, o que muitas vezes faz com que os produtores usem os truques mais baixos para manter este público entretido, curioso, mas não realmente interessado. A culpa não é exclusiva dos produtores, e muito menos de quem cria os conteúdos estilo “fofoca”, mas principalmente do público que gera essa demanda. Muitos dos sites que se dedicam a teorias e revelação de easter eggs também expõem suas opiniões, mas muitas vezes isto recebe muito menos atenção, e muito mais ódio quando são críticas negativas.

Esta cultura de fofoca é um sintoma da falta de senso crítico de parte do público e precisa ser combatida com estudo, mesmo que mínimo, sobre arte, para que as obras consigam atingir objetivos maiores do que apenas entreter e passar o tempo. Mais importante do que discutir a morte de um personagem como um fato, fazendo teorias de como ele poderia ter sobrevivido, é discutir a qualidade da construção disto e a implicação desse elemento na história. Ao contrário da vida real, a ficção precisa ser boa ou ruim, ela não deve apenas ser.

4 comentários

  1. A intervenção que propõe não é algo que os críticos ja fazem? Sempre existiu essa polarização de público, aqueles que se aprofundam, e aqueles que permanecem na superfície. Geralmente as pessoas só se aprofundam naquilo que gostam.

    • Sim, a “doença” é antiga e clara, quis falar um pouco de um sintoma. Mas discordo quanto a última frase, muitas vezes as pessoas que mais gostam (ou dizem serem as maiores fãs) de algo são as que menos se aprofundam e mais apresentam o tal sintoma.

  2. Esse texto me fez lembrar da longintua época em que frequentava fóruns de mangás, e passava o dia todo discutindo teorias de o que ia acontecer nos mangá, hoje já não tem mais saco pra isso, acho mais interesante discutir sobre o que temos ate agora do que do futuro incerto.

  3. “Traição teria desgastado casamento de Goku e Chichi!” – Ri muito disso hauhauahauhahah

    Enfim, concordo com o texto, mas discordo do seguinte trecho:

    “Este comportamento geralmente vem de um entendimento deturpado da ficção em si, quando o observador, num sinal de qualidade no trabalho de imersão da obra, passa a compreender a ficção como realidade e acredita, inconscientemente, que aquilo está acontecendo de fato.”

    Não acredito que as pessoas, ainda que inconscientemente como disse, passem a compreender a ficção como realidade. Acredito estar mais relacionada ao que você disse no último parágrafo, e adiciono que o sintoma da falta de senso crítico é fruto de uma doença causada pela má educação existente no país e, até mesmo, uma população com costumes e cultura pouco racional e muito impulsiva. Daí temos os problemas, como falta de estímulos ao pensamento crítico e a negligência das pessoas quanto aquilo que elas absorvem.

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