Um Mais Um: James Baxter + Shirt Club

Há alguns anos, os desenhos animados começaram a receber abertamente mais atenção do público adulto, resultando em análises e discussões profundas como em qualquer série de TV. Uma característica em comum de algumas das melhores séries animadas atualmente é a autoralidade, sendo projetos muito “artísticos” e íntimos dos criadores. Gravity Falls, por exemplo, conta a história de gêmeos durante suas férias na estranha cidade de seu tio-avô, sendo que o autor inspirou-se em sua própria irmã gêmea e seu tio-avô, não se contendo em fazer piadas internas de sua família na série, além de ter acabado deliberadamente com apenas duas temporadas, revelando um raro controle criativo. Outras duas séries que trazem uma autoralidade parecida são Adventure Time (Hora de Aventura) e a ótima Steven Universe (Steven Universo).

Estas série são consideradas “família”, no sentido de que podem ser assistidas por todas as idades, porém, enquanto muitas entendem que isto significa ser raso para não incomodar ninguém e, assim, se tornam quase exclusivas para crianças com baixo senso crítico, as boas séries colocam subtexto para os adultos e confiam nas crianças para compreender certos dramas e acompanhar conflitos mais intensos. Desta maneira, as obras podem transmitir mensagens mais complexas e comentar assuntos mais densos.

As séries em questão adotam uma estrutura episódica na maior parte do tempo, o que pode incomodar por criar inúmeros “fillers”, mas dá mais autonomia para os diretores e permite que estes explorem melhor temas específicos durante os 11 minutos que dispõem. Analisarei dois episódios que tratam o mesmo tema e que, por serem auto-contidos, não representam perigo de spoiler para quem não acompanha as séries. Portanto, recomendo que, caso não acompanhe as séries, continue a leitura após assistir os episódios James Baxter The Horse, 19º da quinta temporada de Adventure Time, e Shirt Club, 47º da primeira temporada de Steven Universe.

A história deste episódio de Hora de Aventura trata de Finn e Jake encantados com o cavalo James Baxter, que se equilibra em sua bola de praia enquanto relincha seu nome, deixando todos a sua volta muito felizes com isso. Impressionados, os protagonistas começam um processo criativo para encontrar a performance perfeita que alegrará qualquer um. No fim, eles conseguem alcançar esta performance, mas tentam alegrar um velório e enfurecem o fantasma do morto, precisando ser salvos por James Baxter.

Rapidamente, fica claro que a ação de James Baxter, embora soe simplesmente nonsense, é uma forma de arte, especificamente de entretenimento, que faz com que todos esqueçam de seus problemas e fiquem felizes. Esta é uma visão comum para a arte, que seu objetivo é agradar, e não se trata de um equívoco completo. Claro, a arte não tem apenas o foco de tornar o observador mais feliz ou fazê-lo esquecer do que lhe aflige, muitas vezes a qualidade está no exato oposto, mas algumas obras encontram nisto o seu objetivo e se esforçam para alcançá-lo.

No episódio, Finn e Jake demostram bem como o entretenimento de qualidade, embora pareça simples e raso, demanda grande dedicação e esmero técnico para se tornar realidade. Eles fazem testes, pesquisas, cálculos e se esforçam para deixar cada detalhe perfeito e, com isso, gerar o máximo de felicidade nos observadores. Isto é análogo a obras como as de Akira Toriyama, Mad Max e até o próprio Adventure Time, onde a complexidade é baixa e a experiência é guiada pelo sentimento, mas há um trabalho preciso de ritmo e direção focado em conduzir o observador de maneira fluida pelo caminho do entusiasmo e do bom humor.

Contudo, a produção técnica não deve se tornar puramente mecânica e a autoralidade deve ser mantida. No começo do episódio, Finn e Jake tentam reproduzir o que James Baxter faz, mas percebem a necessidade de fazer da sua própria maneira. Eles criam e depois partem para um estúdio de som, onde poderão compreender sua criação e aperfeiçoá-la, mostrando que as ferramentas técnicas devem ser usadas para lapidar a arte com a mesma paixão que qualquer outra etapa de criação. É dito para Finn seguir as batidas de seu coração para encontrar o estúdio, onde farão cálculos e testes, revelando o processo criativo como um equilíbrio entre o coração e a mente dos criadores.

O episódio de Steven Universe trata do protagonista divulgando as aulas de violão de seu pai, Greg, com um folheto desenhado por ele, quando seu amigo Buck propõe que façam uma camiseta com a ilustração. Eles produzem a camiseta e as pessoas adoram vesti-la, mas ninguém vai até Greg para ter as aulas em si. Steven, percebendo que Buck estava usando sua arte para ridicularizar o amor dele por seu pai, acaba espalhando camisetas desenhadas por Buck para o próprio pai, fazendo-o entender a sinceridade dos sentimentos entre pai e filho.

Logo de cara, Buck afirma que ele e Steven estão fazendo arte, seguindo o episódio com inúmeras frases referentes a isto como “O que importa é que estão falando disso, essa é a verdadeira arte”. Buck apresenta, e representa, uma visão cínica da arte, focada apenas no egocentrismo de criar uma “cena” e ser controverso ou subversivo. Não existem sentimentos sinceros colocados nas camisetas, não há objetivos sentimentais ou ideológicos, ele apenas quer criar um burburinho. Os receptores, da mesma forma, enxergam as camisetas como pílulas de diversão, uma simples risada, e nunca se aprofundam na obra.

Esta relação das pessoas com a arte parece uma crítica cabível para alguns espectadores de Steven Universe, uma vez que a série possui muitas mensagens e assuntos relevantes, mas que podem ser ignorados por espectadores mais desatentos que se prendem apenas ao humor que cobre a superfície da obra. E nem sempre se trata de uma incapacidade intelectual, mas sim de uma indiferença e uma impermeabilidade deliberada, afinal as mensagens de Steven Universe não são tão complicadas. No episódio em si, as pessoas não conseguem absorver a mensagem sobre as aulas de violão, mesmo ela estando literalmente estampada na camiseta.

Há também o valor emocional das camisetas, revelando o inocente e sincero amor de Steven por seu pai. Este tipo de relação familiar é um tema recorrente em Steven Universe, reforçando a analogia entre a camiseta e a série, e Buck observa isto de uma maneira esnobe, uma vez que ele tenta se fechar para o próprio pai. Porém, Steven consegue fazer com que Buck compreenda sua mensagem e seus sentimentos ao quebrar a concha do rapaz e levá-lo a repensar a relação com seu pai, algo que a série faz muito bem com seu espectador no primoroso episódio Lion 3: Straight to Video. Steven Universe, a série e o personagem, mostram que têm mais a oferecer do que simples risadas.

Igual a:

Ambos os episódios tratam de originalidade, autoralidade e objetivo artístico, mas são extremamente diferentes em suas abordagens e conclusões, podendo até soar opostos. Algo comum entre eles é a metalinguagem das discussões, referenciando a produção e a natureza das séries em que estão inseridos. Como já dito no começo, as duas séries são bastante autorais e íntimas, com piadas internas e inspirações muito particulares.

O nome James Baxter não foi inventado por Adventure Time, trata-se de um animador que já trabalhou em projetos como Kung Fu Panda, Madagascar e O Príncipe do Egito, animações “família” geralmente focadas em transmitir bons sentimentos e deixar o espectador alegre no fim das contas. A própria imagem do cavalo sobre uma bola de praia foi uma piada interna dos criadores da série com o animador no tempo da faculdade, o que motivou James Baxter a dublar e animar todas as cenas do cavalo batizado em seu nome.

Já em Steven Universe, a criadora Rebecca Sugar baseou o protagonista em seu irmão, Steven Sugar, e as Crystal Gems nas personalidades que ela precisava assumir para lidar com ele. Desse modo, o tema familiar de Steven Universe é muito pessoal e a camiseta representa o amor de Steven por seu pai tanto quanto a série representa o amor fraterno da criadora.

James Baxter e Steven Sugar

A diferença das abordagens dos episódios está em como eles representam a alegria proporcionada pelas obras. Em Hora de Aventura, a alegria é o objetivo primário e todos os meios levam ao mesmo fim, mostrando um desenvolvimento altruísta e esforçado da arte de entretenimento. Não há mensagem escondida ou subtexto complexo, pois a complexidade está no modo como a performance foi pensada e produzida, não no resultado em si. Claro, a arte de James Baxter pode ser analisada profundamente, como Finn e Jake demonstraram, mas será uma análise mais estrutural do que qualquer outra coisa, pois o público médio verá que o entretenimento encontra seu fim nele mesmo.

Já em Steven Universe, a diversão é um meio útil, geralmente servindo a um propósito mais profundo. Steven não fez sua arte pelo entretenimento, ele tem o objetivo claro de conseguir alunos para seu pai. A alegria, que não passa de uma risada, vem de uma má interpretação do público e uma indiferença quanto a verdadeira profundidade objetiva da obra. Entretanto, não se trata apenas de possuir um objetivo e atingi-lo – Buck vê como objetivo o tal burburinho criado com sua arte subversiva – deve-se ser honesto consigo mesmo e usar seus sentimentos e sua alma para transmitir uma experiência real. Diferente de Finn e Jake, que queriam proporcionar risadas por altruísmo e colocaram seus corações em sua arte, Buck cria com muita frieza e distanciamento, encontrando a verdadeira compreensão de sua arte quando se deixa ser atingido pelo que ela realmente quer dizer.

Portanto, é importante saber absorver, observar e sentir profundamente a arte. O leitor deve evitar o cinismo, indo de mente e olhos abertos para as obras e compreender seus meios e seus fins, enquanto o autor deve ser honesto consigo mesmo e com sua obra, sem tornar-se automático ou imitar o que dá certo, porém sem focar-se apenas em ser subversivo ou controverso. O artista deve procurar dentro de si o que sua essência tem de único para, enfim, trazer isto ao mundo de uma maneira original. Deste modo, a arte poderá mudar vidas, seja nos fazendo repensar nossa relação com o mundo ou proporcionando alguns breves minutos de boas risadas.

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