Lúcifer e o Martelo (ou Hoshi no Samidare, no original) é um mangá frequentemente citado para exemplificar várias qualidades que uma obra deve ter. Lançado no Brasil pela editora JBC, concluído em 10 volumes, a obra de Satoshi Mizukami traz uma comédia inteligente, ação honesta, dramas eficientes, um universo coeso e um primor pontual na relação entre os personagens, construíndo ótimos arcos de forma orgânica e consistente.
A trama de Lúcifer e o Martelo se torna mais intensa logo após a reunião dos personagens, dando a impressão que acompanhamos um único arco até o fim da história. Entretanto, mesmo em sua duração relativamente curta, existem momentos da história que contam histórias particulares e que podem ser analisadas independentemente. A análise a seguir, obviamente com spoilers, envolve os acontecimentos dos volumes 7 e 8, onde acompanhamos a batalha contra o 10º Golem e o surgimento do 11º, pavimentando a estrada que levará os heróis ao fim de sua jornada.
O Guerreiro Coruja, Akane Taiyou
Desde o começo do mangá, notamos que Akane, o guerreiro Coruja, tem uma atitude cínica em relação ao mundo ao seu redor e sua missão como protetor dele. Isso o leva a trair seus companheiros e tomar o lado de Animus, enquanto convive com os outros guerreiros. O garoto lembra o protagonista do mangá, Amamiya Yuuhi, por sua frieza e indiferença, mas a imaturidade de Akane faz suas ações serem mais fúteis. É neste arco, então, que sua personalidade é aprofundada e desenvolvida.
Para começar, ele tem uma relação muito fria com sua família, já que eles parecem não dar a atenção devida ao garoto. Isto torna a relação dele com seus amigos mais complexa, já que ele quer ter contato mais direto com outras pessoas, mas também se acostumou a viver sozinho com sua indiferença. Assim, é compreensível que o garoto se encha de dilemas quando começa a ter pessoas se preocupando em protegê-lo, ensiná-lo e agradá-lo, talvez no primeiro momento onde ele sentiu um vínculo forte com alguém.
O 11º golem entra como um elemento muito importante para essa evolução de Akane, já que o ser criado por Animus está em um processo de compreender a humanidade e tentar se humanizar, enquanto o guerreiro Coruja parece estar no caminho contrário, tentando tornar-se mais mecânico e vazio. A relação dos dois é interessante por isso, obrigando Akane a repensar conceitos humanos básicos para ensinar e trazendo à tona seus sentimentos reprimidos ao contrastar com o vazio de sentimentos do golem.
Com seus dilemas em relação a sua conduta, Akane começa a questionar sua traição e passa a pender para o lado de Anima na guerra. O começo de sua virada ocorre quando ele descobre que, contrariando sua personalidade, ele possui poder de cura, algo que serve para os que estão ao seu redor e não apenas para ele mesmo. Mizukami usa um símbolo muito inteligente para demonstrar a mudança que essa revelação traz, colocando o garoto encurralado em uma caverna junto com as outras crianças do time, quando um golem surge na entrada. Ainda que seja um inimigo dos guerreiros, para Akane ele representa sua parceria com Animus; enquanto na página seguinte, Amamiya surge na entrada da caverna, na mesma posição do golem. Uma vez que Akane aceitou a proposta de Animus por indiferença e solidão, este é o momento em que isso é substituído pela amizade de seus companheiros. A partir daí, ele amadurece em um dos melhores momentos de todo o mangá.
Percebendo que Animus não representa mais seu porto seguro, Akane descobre que o 10º golem original está em sua casa são e salvo, enquanto seus clones evoluem e atacam os guerreiros. A cena de batalha entre o garoto e o golem é incrível por servir inúmeras funções narrativas e ser cuidadosamente construída. Este golem foi estabelecido como um ser fraco individualmente, deixando crível a acirrada disputa física contra o garoto, igualmente fraco. Além disso, a batalha termina com um avanço significativo do plot, revelando a última besta mística e derrotando mais um golem.
O mais interessante, porém, é a evolução de Akane como personagem. Por Animus ter escondido o 10º na casa do garoto, ele precisou lutar para proteger seu irmão, criando finalmente uma conexão entre o garoto e sua família, conseguindo envolver também o tema de amadurecimento presente em todo o mangá. Naquele momento, machucado e determinado, ele agiu como um adulto e foi recompensado pela história por isso. Ainda que se mantenha na fronteira entre os dois lados da guerra por mais algum tempo, ele abdica da indiferença e imaturidade de Animus, e fica claro que seu coração está com Anima e seus guerreiros.
Criação de Golem, Arte
Além de ser sobre os personagens e seu amadurecimento, como boa parte do mangá, este arco também é sobre arte. A recorrência do tema no arco deixa clara sua relevância; Shimaki, o guerreiro Gato que cria golens como Animus, passa por um bloqueio criativo, levando-o a fazer uma reunião de ideias com seus amigos, algo muito semelhante a um brainstorm, além do próprio Maimakterion encontrar inspirações para suas novas formas em mídias como animações, filmes e até tokusatsu. Na batalha de Shimaki contra o 11º golem, o tema é exposto nos diálogos e a correlação entre a criação de golens e criação de arte é escancarada.
Sim, golens são arte, visto que são obras vindas de um processo criativo e construídas artificialmente por seres humanos (ou quase, no caso de Animus). O que importa aqui é a visão que os criadores têm de suas criações, ou que o autor tem com sua obra. Na visão de Shimaki, e provavelmente de Mizukami, o autor deve criar sua obra do fundo de si mesmo, colocando seu espírito nela e respeitando-a como parte dele. Animus, por outro lado, enxerga suas obras como simples armas vivas para atingir seus objetivos, sem qualquer conexão pessoal e profunda com elas. Ainda assim, ele é capaz de criar uma obra-prima: Maimakterion.
Este golem, além de ser especial como indivíduo, também é uma peça artística ímpar. Animus, intencionalmente ou não, colocou muito de si nesta criação e viu o golem se tornar muito parecido com ele quando criança, tanto em sua busca por identidade, sua obsessão por livros e sua arrogância. Esta conexão do autor com a obra faz do 11º muito interessante como arte, mas o que realmente torna-o poderoso é sua habilidade de evoluir. Em uma analogia, Maimakterion é como um livro que se torna mais profundo conforme lemos, o que faz dele uma obra muito complexa. Não por acaso, no começo do arco ele luta envolto de inúmeros golens menores e mais fracos, como obras mais simplórias e superficiais, feitas aos montes e puramente dispensáveis.
Shimaki percebe que é necessário colocar sua alma na obra e entendê-la como parte dele mesmo, para assim poder enxergar a criação como algo vivo. Ele aprende essa lição ao ver a obra-prima de Animus, o 11º, com sua profundidade e vitalidade, conseguindo derrotá-lo ao aplicar essa dedicação às suas obras de forma espontânea e natural.
O 11º Golem, Maimakterion
Logo que somos apresentados ao 11º golem, vemos que se trata do mais poderoso até aquele momento, com a habilidade de se transformar em qualquer coisa ou qualquer um. A primeira vista, ainda que seja diferente dos outros, ele parece apenas um monstro que irá trazer uma ameaça física e psicológica para os personagens principais. Entretanto, logo notamos que ele é mais especial do que aparenta.
Maimakterion, o tal golem, enfrenta os guerreiros junto com inúmeros outros golens, estes muito mais burros e vazios do que ele, gerando um contraste que destaca suas características particulares. Além disso, ele tem um alto nível de humanidade e tenta melhorar isso a todo o momento. O autor levou seu poder para outro nível ao compreender que mudar não é simplesmente fazer seu corpo ficar maior e mais forte, mas é o que nos faz evoluir como seres humanos. Essa capacidade de evolução faz com que Maimakterion possa e deseje aprender, amadurecer e tornar-se um indivíduo melhor.
O objetivo dele é a humanidade, já que ele é como uma folha em branco, enquanto o mais indiferente dos humanos ainda é infinitamente mais complexo que ele. É interessante notar o visual que ele adota na maior parte do tempo, visto que ele pode se transformar em absolutamente qualquer coisa e prefere se apresentar como um garoto comum. Esta identidade visual é uma junção de Animus, seu criador, e Akane, seu exemplo de humanidade, mas sua jornada é por encontrar sua própria identidade, já que estas duas inspirações não são da mesma espécie que ele e demonstram uma humanidade tênue que Maimakterion que superar, pois apresenta uma plasticidade em suas ideias e capacidade de adaptação mais forte que eles.
Mesmo assim, sua busca por identidade individual se mostra sempre muito complexa. Ele tem dificuldade para compreender a humanidade, algo muito bem escrito por Mizukami, mostrando o golem ignorando ou questionando ideias simples do nosso mundo, mas ele demonstra inúmeras características puramente humanas que nenhum outro golem aparentou ter. Maimakterion tem raiva e arrogância ao enfrentar oponentes que considera muito fracos, mostra inveja e curiosidade ao querer passar um dia com a família de Akane e até certo nível melancolia por sentir-se incompleto. Com tantos sentimentos, o que faz dele tão diferente de nós?
Este golem sofre do típico problema de híbridos que não se encaixa em nenhum lado, sendo profundo demais para ser um golem comum e superficial demais para ser um humano completo. O que lhe deixa ancorado entre os golens é sua utilidade como ferramenta. Tanto no mangá quanto na mitologia do nosso mundo, golem é um ser feito a partir de material inanimado em um processo artificial, de modo que sua vida pertence a alguém e sua existência precisará servir para alguém. Animus cria golens como armas, então esta é a função de Maimakterion, e não importanta o quanto ele evolua como indivíduo, ele sempre estará preso a esta obrigação.
Em sua batalha final, Maimakterion é derrotado exatamente quando se entrega totalmente a sua função, abraçando sua identidade de ferramenta de combate e abandonando sua humanidade, inclusive fisicamente ao assumir uma forma demoníaca e caótica. Isto revela a resposta para sua busca por identidade: A individualidade está em ser inútil. Ser útil significa servir para algo ou poder ser usado, mas nossa liberdade está em ter liberdade ao não servir, poder fazer coisas que encontram sua validade em si próprias e não em suas consequências ou resultados. Ler, por exemplo, geralmente não precisa servir para algo que não o simples prazer da leitura, e a última frase de Maimakterion, quando Shimaki pergunta se ele tem algum arrependimento, revela a conclusão que o golem chegou antes de seu fim:
“Eu quero ler.”
Muito boa leitura e uma forma interessante de enxergar os acontecimentos deste momento que são tão importantes para o mangá. Parabéns pelo post Leonardo.
Só vim protestar que quando eu mandei e-mail pro AoQuadrado falando que o Maimakterion era um puta personagem, o Judeu falou que achou ele pretensioso. E assim encerro minha jogada.
Acho que tu interpretou errado o que ele disse, hein. Fui ouvir a leitura de emails em questão e ele fala que trata os temas “sem parecer pretensioso”.
Aaah! Olha aí! Foi descuido meu na hora de ouvir, então. Mas fiquei alguns anos acreditando que ele tinha me dito isso, com a vingança me consumindo por dentro… minha vida é uma mentira, tsc.
Porra! Que ótimo texto, que excelente final!
Eu vim aqui pois terminei Hoshi no Samidare hoje 12/07/2017 e estava refletindo sobre as partes do mangá.
Uma que me chamou grande atenção foi que eu percebi que tinha algo para se aprofundar foi o volume 7, sem edições foi isso que escrevi: “Um volume estranho que foca no traidor e sua personalidade de depressão que no final deixa um toque indeciso do que pode ocorrer. No começo ouve um cap de enrolação no qual apenas o final foca no útil. Vol foca na aflição de um garoto e desenvolve a dúvida sobre sua personalidade é um vol complicado de analisar, pois ele entrega algo, mas que ainda deixa dúvidas, no fim foi algo que eu gostei e tem algo a mais, para a vida, para se tirar desse vol”.
Fico grandemente feliz por ver que realmente tinha uma grande reflexão e que encontrei não apenas a resposta para a minha dúvida aqui, mas que através do seu texto me foi esclarecido o que eu queria junto com coisas que eu deixei passar batido como o que é um golem e sobre o golem 11 (Maimakterion).
Consegui perceber 1/3 dos exemplos que o autor loadnero percebeu e com sua explicação consegui compreender os 3. Devo crescer e ter uma maior sensibilidade para notar as sutilezas presentes em boas obras, como Hoshi no Samidare.
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Extra:
“Maimakterion, o tal golem, enfrenta os guerreiros junto com inúmeros outros golens, estes muito mais burros e vazios do que ele, gerando um contraste que destaca suas características particulares.”
“no começo do arco ele luta envolto de inúmeros golens menores e mais fracos, como obras mais simplórias e superficiais, feitas aos montes e puramente dispensáveis.”
“Esta identidade visual é uma junção de Animus, seu criador, e Akane, seu exemplo de humanidade, mas sua jornada é por encontrar sua própria identidade ”
Incrível como o autor do mangá conseguiu resumir isso em uma única imagem, por si só não valeria nada, mas dado todo o contexto vale muito: https://i.imgur.com/qTMSGLW.jpg