Uma característica muito recorrente em jogos mobile é a repetição, pois isto torna a jogabilidade mais acessível e viciante, qualidades muito importantes para o mercado em que estão inseridos, como abordei no artigo sobre o valor artístico da plataforma mobile. That Level Again, criado pelo desenvolvedor independente IamTagir, brinca com a repetição e subverte-a para tornar cada fase diferente e igual ao mesmo tempo. Esta não será uma análise puramente técnica do jogo, como geralmente se faz com aplicativos para celulares e tablets, mas focada no modo como o autor faz escolhas artísticas para transmitir conceitos, sensações e sua história.
A ideia do jogo devia bastar para atrair qualquer jogador: Uma única fase com 64 desafios diferentes, cada um com apenas uma dica vaga para sua resolução e utilizando o celular ou tablet como elemento vital de sua jogabilidade. Este é seu maior diferencial, usar a plataforma a seu favor de forma muito mais diversificada que a maioria dos jogos, dando a impressão que cada fase é um jogo novo. O primeiro jogo da duologia, chamado apenas That Level Again, empolga por surpreender, utilizando várias ferramentas inesperadas do aparelho e brincando com o jogador de uma forma bastante direta, sem medo de quebrar a quarta parede.
O segundo jogo traz uma fase com design mais complexo, o que muda um pouco a dinâmica dos desafios. As resoluções se tornam mais elaboradas e muitas fases são divertidas em suas mecânicas e sensações de brincar com a fase, ainda que mantenha alguns desafios lógicos. A expansão da fase para dois cômodos e a adição de um teclado também trazem mais possibilidades para as ideias do criador e permitem que ele reinvente algumas dos desafios anteriores de forma satisfatória. Talvez seja menos desafiador que o anterior, principalmente por não possuir o elemento surpresa, mas com certeza mantém a diversão e a empolgação a cada ideia nova que nos é apresentada.
That Level Again funciona como passatempo para qualquer pessoa, levando o jogador a se achar um idiota ou fazendo-o se sentir inteligente por completar os desafios sem clicar na lâmpada com a resposta. Estas, aliás, são um elemento muito inteligente do jogo, dando a opção de desistir e descobrir a resolução com um clique, mas obrigando o jogador a assistir um comercial para isso, tratando estas propagandas, de forma honesta, exatamente como a vemos: um castigo. Em todos os seus elementos, o jogo tem uma abordagem bastante irônica e quase cínica, adjetivos aplicáveis também a experiência de jogá-lo.
Espero ter sido convincente o suficiente, porque falarei de forma mais específica dos elementos do jogo a partir daqui. Embora seja bastante abstrato o modo como a história é contada, o resto do texto pode ser considerado como spoiler, portanto procure That Level Again na loja de aplicativos mais próxima e baixe ambos gratuitamente. Empolgue-se com a divertida experiência e retorne para pensar um pouco sobre ela.
Uma História de Amor e Perda
Independente de qualquer profundidade destes jogos, é fácil notar que suas escolhas estéticas têm um conceito coerente. Temos um protagonista desenhado de forma simples, mas visivelmente pálido e com olhos fundos, que remetem levemente a um cadáver, colocado sobre um cenário com poucas cores e nenhum tipo de conforto no primeiro jogo, onde as plataformas são disformes e assimétricas. Estas escolhas de design provavelmente não são simples enfeites e seu propósito de criar um clima mórbido tem um papel fundamental na compreensão do jogo.
Nunca nos é explicado o que está acontecendo com o protagonista, que sequer tem um nome, somos apenas jogados em uma repetição incessante que nos diverte, mas não apresenta contexto algum. Compreendendo as escolhas artísticas que levam ao clima fúnebre da obra, podemos sugerir algumas ideias em relação a história e ao personagem. O visual cadavérico do protagonista pode indicar que ele está morto ou muito próximo disto, trazendo a possibilidade das repetições representarem ou causarem uma instabilidade psicológica e emocional. A resposta mais plausível parece ser que jogamos com um personagem em um nível avançado de depressão que se vê preso em um mundo irritantemente repetitivo, sem vida e sem cor, desesperado para deixar tudo para trás em um inevitável suicídio.
A ideia pode parecer absurda ou forçada em um primeiro momento, mas existem evidências coerentes que corroboram com esta teoria. É fato que as fases brincam com as nossas expectativas e podem até estressar o jogador em alguns momentos, mas não nos vemos como o personagem, ele é apenas mais uma ferramenta para resolver os desafios. Sem sequer ter alguma habilidade para ajudar, ele geralmente parece mais um obstáculo da fase por sua natureza autodestrutiva e impotente. Além disso, a última fase do primeiro jogo é bastante sugestiva ao levar o personagem na direção de uma luz intensa. Os sons de pássaros podem sugerir que ele finalmente está livre para voltar ao mundo real, mas por tudo o que veio antes e o que vem depois, é mais provável que a luz no fim do túnel signifique sua desejada morte.
O segundo jogo traz diferenças significativas em sua estrutura, como apontei enquanto discutia a parte técnica, incluindo também um novo ambiente que traz outro tipo de sensação e clima. Visualmente, ele é mais claro, tomado pelo branco, e muito mais aconchegante, sendo uma casa com elementos comuns do cotidiano como portas, janela, chave e outros objetos que surgem esporadicamente. Isto, entretanto, serve para criar apenas uma falsa sensação de realidade, como se aquela fosse a casa do protagonista, quando sabemos que a repetição insana se mantém como no outro cenário. A interpretação mais coerente, observando o jogo como um todo, é que presenciamos em That Level Again 2 uma representação do purgatório, ou qualquer outro plano intermediário entre a Terra e o pós-vida.
Na última fase deste segundo jogo, encontramos uma moça chorando em frente a um penhasco, que o protagonista pula e, embora não alcance o outro lado, consegue chegar até ela ao flutuar sobre o abismo. Os dois partem e temos o fim do jogo com o casal andando. Uma leitura superficial diria que o personagem escapou de sua casa, sendo o segundo jogo outro momento de depressão, e conseguiu retomar a vida junto de sua amada recém apresentada. Todavia, o modo como ele flutua no penhasco sem cair cria uma rachadura nesta teoria, enquanto um easter egg no menu inicial do jogo vem como uma marreta para destruí-la por completo. Em ambos os jogos, o protagonista está sentado no menu inicial – algo que serve para mostrá-lo enfraquecido, encolhido, uma vez que mostrá-lo de pé representaria uma força e uma determinação incoerente – e, no segundo jogo, se dermos dois toques sobre qualquer parte do retângulo cinza em volta do personagem, a moça da última fase surge caminhando na direção dele e, no momento que está prestes a alcançá-lo, ela some como um fantasma.
Este detalhe escondido no jogo esclarece toda a história. Desde o começo, acompanhamos a um homem que perdeu sua amada e entrou em depressão extrema, vendo-se preso em um pesadelo em vida e buscando arduamente sua liberdade. Ele encontra na morte sua saída, mas se vê preso novamente após se suicidar, desta vez em um plano etéreo que obrigá-o a reviver a mesma sensação de impotência e aprisionamento para testar sua determinação. Porém, agora ele se sente muito mais poderoso para superar os desafios, pois possui um objetivo a alcançar. No fim, ele finalmente supera todos os obstáculos e o casal é reunido em um final feliz no pós-vida.
É muito interessante perceber que o autor do jogo conseguiu transmitir essa história nos detalhes, sem nunca precisar de diálogos e instigando a curiosidade com um uso relevante do visual, da mecânica e do clima do jogo. A morte é um fator frequente em qualquer jogo, mas aqui o autor faz questão de deixar o corpo do protagonista no local da última morte, usando-o para a resolução de alguns desafios, seja para pular mais alto ou como sacrifício em um ritual satânico – desafio este que já revelava a relação com o sobrenatural religioso e demonstrava a importância da morte na história. Além disso, o primeiro jogo tem soluções mais difíceis e estressantes, enquanto o segundo dá mais variedade no controle do personagem com ângulos, controle e até habilidades novas, deixando mais divertido do que desafiador e podendo ser interpretado como um empoderamento emocional do protagonista que, neste segundo, possui um objetivo mais claro e um desfecho mais feliz.
That Level Again é um jogo incrível, uma experiência divertida e uma obra idealmente harmônica, utilizando as particularidades e ferramentas da plataforma para construir sua divertida jogabilidade.
That Level Again é um jogo incrível, uma experiência envolvente e uma obra idealmente coesa, utilizando os detalhes artísticos para construir sua interessante história.
That Level Again tem uma história simples, mas é uma experiência sedutora e uma obra sem prepotência ou autoindulgência, utilizando a trama como pano de fundo para focar em sua inventiva jogabilidade.
pelo seu texto me parece ser um jogo fantástico, se eu tiver tempo talves de uma olhada
o penultimo parágrafo ta repetido