Estrutura do Epílogo: Naruto e Lúcifer e o Martelo

No Mangá² desta semana, o tema foi o momento derradeiro dos mangás, o epílogo. Dois exemplos muitos citados foram Naruto e Lúcifer e o Martelo, um péssimo e um ótimo final, respectivamente. O foco da discussão foi a relevância para a experiência de leitura, as motivações e os sentimentos que estes epílogos transmitem, mas estes dois exemplos possuem uma diferença na maneira que são construídos e que dizem muito sobre seus autores. Analisarei, obviamente com spoilers, o último capítulo das duas obras para demonstrar as diferenças estruturais que definem a qualidade destes epílogos.

O ponto mais importante, e que resume porque o final de Lúcifer e o Martelo agrada muito mais que o de Naruto, é o fato de que estes epílogos são, antes de mais nada, capítulos. Portanto, ainda que haja uma forte carga emocional, é esperado o mínimo de atenção à estrutura, com um arco distinguível e bem desenvolvido, uma linha narrativa sólida e todos os elementos comuns a todos os outros capítulos. É claro que o capítulo 700 de Naruto tende a se aproximar muito mais de um extra, principalmente quando vemos que ele é inteiramente colorido e cheio de fanservice barato, mas o compromisso de contar uma boa história permanece.

Um teste interessante é tentar descrever para alguém o que acontece no capítulo final de Hoshi no Samidare e fazer o mesmo com Naruto. Certamente, encontraremos dificuldades ao fazer isso com Naruto, pois a tendência de uma história é seguir uma linha, acompanhando um ou mais elementos que estão lá para chegar no mesmo objetivo final. O capítulo 700 da obra de Kishimoto não demonstra o mínimo esforço em fazer isso.

O capítulo é corrompido desde o conceito por tentar servir como a conclusão de Naruto e a introdução de Boruto, quando um último capítulo deveria focar apenas na primeira. Acompanhamos a trama de Boruto e sua travessura em paralelo com a reunião dos Kages na Vila da Folha, ao mesmo tempo que vemos cenas isoladas dos outros personagens relevantes do mangá. A primeira trama, focada em Boruto, é minimamente estruturada, com o garoto planejando, revelando suas motivações em diálogos bastante óbvios e sendo confrontado por seu pai no clímax do capítulo. O fato de já termos visto basicamente o mesmo tipo de personalidade em Naruto acaba soando mais como uma repetição injustificada do que uma rima temática, principalmente porque as páginas que deveriam estar sendo usadas para construir Boruto estão ocupadas pelo fanservice da antiga geração e o climax do capítulo tira todo o possível peso do novo protagonista ao ser o primeiro quadro a revelar Naruto como um adulto.

A justificativa para a apresentação dos filhos dos personagens que acompanhamos antes é a passagem de geração, um tema supostamente relevante para o mangá como um todo. Entretanto, os antigos continuam ali, roubando o espaço da apresentação dos novos personagens, que são relegados a diálogos que precisam ser expositivos para resumir as personalidades apressadamente. O final do capítulo, focado numa nova geração de Kages, também não funciona pela falta de foco do capítulo, que, já com poucas páginas sobrando, concluiu a trama da tal reunião sem nunca a ter desenvolvido ou justificado.

Não há cena de impacto ou conclusão catártica, como era de se esperar, nem mesmo momentos emocionantes de casais desejados por fãs ou Naruto sendo aclamado pela Vila como novo Hokage, mostrando que o autor dedicou o capítulo a um fanservice que ele nem ao menos sabia como fazer. Kishimoto não se esforça em construir nenhuma cena marcante e ignora completamente o ritmo, terminando a história no começo de uma reunião que não importa em nada para o leitor ou para o capítulo, construindo uma trama que, em questão de ritmo, possui vários começos e meios, mas nenhum fim satisfatório.

O pior problema desta estrutura porca, e o causador dela, é mesmo a maneira como o fanservice é feito. Claro, esta é geralmente é uma ferramenta barata para pegar o leitor pelo sentimento e ludibriar sua lógica e seu sendo crítico, mas há formas de usá-lo sem danificar a qualidade da história e podendo, inclusive, intensificá-la por meio dos fortes sentimentos do leitor pela obra. A maneira que Kishimoto encontrou de mostrar seus personagens crescidos foi dar alguns quadros para eles separadamente, de modo que nenhuma das aparições está movendo a trama do capítulo e não seguem qualquer linha narrativa lógica. Se este capítulo fosse uma estrada, seria uma linha reta com alguns poucos quilômetros e várias ruas sem saídas para todos os lados.

Opondo-se a isso, temos Lúcifer e o Martelo e seu último capítulo. Como a maioria dos epílogos, temos os personagens adultos, casais confirmados e o mesmo tipo de fanservice, mas o que faz dele um bom epílogo é exatamente sua estrutura como capítulo e seu esforço para criar uma boa trama e elementos que se conectam a ela. Como dito no podcast, o epílogo deve servir um propósito, e este acaba revelando algumas curiosidades sobre a história e fechando algumas pontas soltas, mas também possui qualidades por si só.

No começo, vemos nosso protagonista, Amamiya, reencontrando Anima, causando uma nostalgia nele que flui do mangá para o leitor, mesmo que tenhamos acabado de ler os capítulos anteriores. O autor escolheu o protagonista para estrelar o capítulo, pois nos importamos com ele e, no final da obra, queremos nos despedir dos personagens que conhecemos e não conhecer personagens novos. Anima pergunta sobre seus guerreiros e Amamiya conta como eles estão por meio de memórias, algo que permitiria que ele falasse individualmente de cada um sem se importar com uma sequência lógica. Mesmo assim, provando a qualidade de sua escrita, Satoshi Mizukami prefere contar uma lembrança contínua, acompanhando um dia na vida de Amamiya onde ele encontrou todos os guerreiros, mostrando-os de forma orgânica, mesmo que haja uma ou outra coincidência.

Há uma história sendo contada pelos flashbacks, respeitando regras de ritmo e de lógica, com apresentações sutis das mudanças na vida dos personagens e completando as informações com o diálogo justificado entre Amamiya e a curiosa Anima. O protagonista, inclusive, deixa para contar o destino de Samidare, a personagem que dá título a obra, por último, pois, diferente de Kishimoto, ele entende que uma boa narrativa se constrói com elementos mais simples para surpreender e impactar no fim. Isto tudo mantendo a coesão narrativa ao não ignorar elementos construídos durante o capítulo, como o trabalho de Amamiya, e preparando, em um diálogo sutil, a cena da praia que fecha o capítulo.

Este final, que também poderia ser apenas um extra onde todos os guerreiros estão juntos novamente, acaba mostrando sua qualidade nos presentes que Samidare dá para seus amigos. Por ter passado muito tempo se recuperando de sua doença, ela teve tempo de fazer bonecos de pelúcia dos animais, criando uma cena que eleva a qualidade do capítulo. Trata-se de algo coerente com a personagem, que serve como clímax emocional do capítulo e é se mostra uma cena marcante e inventiva. A ideia de trazer os animais, grandes representantes da magia do mangá, como brinquedos relembra os personagens e os leitores que a magia acabou, mas as lembranças e os sentimentos ainda estão presentes. São páginas muito bonitas que resumem o final e dão a última injeção de emoção no leitor antes de deixarmos os personagens naquelas últimas páginas que definem o tema do amadurecimento desenvolvido desde o começo. Se o último capítulo de Hoshi no Samidare fosse uma estrada, ela seria cheia de atalhos que conseguem convergir na direção de um mesmo objetivo, fechando com uma última subida antes do destino final.

No fim, estruturalmente, escrever um epílogo é como escrever qualquer outro capítulo. É preciso ter uma boa história, com boas ideias e bons momentos, com o diferencial de que esta conclusão terá um peso emocional diferente e o autor precisa trabalhar com os desejos do leitor, mas nunca restringir seu capítulo em benefício desta necessidade. A história é sempre uma estrada e, antes de tudo, estradas são feitas para levar a lugares, por isso o autor precisar criar seus caminhos com cuidado para cumprir esse objetivo e proporcionar a melhor viagem possível ao leitor.

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