Volume único, de Daniel Bretas.
Comprei alguns quadrinhos autorais e independentes na Comic Con Experience 2015 que me agradaram bastante, com estilos variados de história, arte e formato físico. Destas, sem sombra de dúvida, a obra que me encantou mais profundamente foi Shut Up and Listen, de Daniel Bretas. Responsável pela divertida e competente arte de Starmind, vencedor do BMA 2014 e atualmente publicado pela Editora Draco, onde divide autoria com Ricardo “Ryot” Tokumoto, aqui publica seu trabalho solo e extremamente autoral com o selo do Estúdio Black Ink.
Para começar, o preço de Shut Up and Listen pode surpreender o leitor quando posto em contraste com o material aparentemente modesto. A obra é grampeada, logo não tem lombada, e trata-se de uma coletânea com cerca de 40 páginas e apenas quatro histórias, custando vinte reais na loja do autor, preço superior a volumes de mangás comuns com três ou quatro vezes o número de páginas. Esta é uma visão simplista, porém. O papel utilizado aqui é de qualidade, com pouquíssima transparência e um cuidado ímpar aos detalhes, mostrando que autor fez escolhas conscientes para deixar a experiência física de leitura a altura de seus desenhos e suas ideias.
O formato das páginas é um pouco mais largo e horizontal que o formato comum para mangás, um detalhe que traz um aspecto visual ligeiramente diferente e único; há também um cuidado para termos páginas vazias de descompressão ao fim de cada história, evitando que duas histórias diferentes ocupem dois lados da mesma folha. Além destes detalhes, a capa e a quarta capa são lindas e chamativas. A capa traz uma ilustração com o traço fabuloso e as cores de Daniel Bretas, com um efeito de água nos cabelos dos personagens que me impressionou particularmente, enquanto na quarta capa temos dois elementos muito abstratos e curiosos, mantendo a predominância do azul, chamando a atenção com o mesmo recurso da primeira capa de Assassination Classroom.
O visual de tirar o fôlego se torna um dos pontos mais fortes da obra durante a leitura, pois o autor faz seus desenhos com muitos detalhes, mas também carrega uma inspiração de mangás que não o deixam ir longe demais para o realismo total, mantendo um estilo próprio muito peculiar. A cada história, vemos suas habilidades sendo exploradas de maneiras novas, seja no traço, na quadrinização ou no ritmo.
Na primeira, temos ótimos quadros isolados, mostrando o personagem e o modo como ele interage com o mundo em ângulos interessantes e únicos. Na segunda história, temos uma cena conduzida pelos diálogos, algo que é feito com muita naturalidade e credibilidade, de modo que acreditamos que aquela conversa poderia acontecer e conhecemos os personagens muito bem apenas pelas suas falas. Na terceira, o autor demonstra sua habilidade em criar visuais e personagens fantasiosos, mantendo-se clichê e competente, e desenha cenas de ação utilizando quadros mais dinâmicos e poses de impacto que funcionam relativamente bem. Por fim, ele constrói uma narrativa absolutamente silenciosa em um ambiente sem complexidade alguma, deixando sua condução da cena brilhar junto com uma boa dose de abstração.
Portanto, qualquer um que tenha oportunidade de ler esta obra terá uma experiência muito rica. Uns podem considerá-la pretensiosa demais por não seguir caminhos comuns de narrativa, sendo uma coletânea de histórias focadas em visual ou na pura subjetividade do leitor, mas Daniel Bretas demonstra possuir muito conhecimento de quadrinhos, sabendo conduzir boas cenas e utilizando ideias que só funcionam nesta mídia, além de ser um desenhista talentosíssimo. Se lhe faltam motivos para ler este quadrinho, Shut Up and Listen trata a linguagem da mídia como poucas obras fazem, e isto é o suficiente para qualquer fã de quadrinhos apreciar profundamente esta obra.
A partir daqui, a análise só fará sentido para quem realmente leu a obra, pois haverão análises de cenas específicas e, claro, spoilers.
É um fato que este quadrinho é muito autoral e abstrato, podendo ser apenas uma experimentação artística ou ter um tema sendo desenvolvido durante toda a obra. Acredito que todo leitor tenha tirado algum tipo de conteúdo de cada história ou de todas em conjunto, mesmo que sejam apenas sensações e pensamentos vagos ou incoerentes, algo que pode estar alheio a intenção consciente do autor ou até mesmo as informações presentes nas páginas. Darei aqui a minha interpretação, tentando manter o máximo de coerência possível.
Se há algo em comum entre todas as histórias, é a vida urbana e sua artificialidade em relação a natureza, somando-se a isso a tecnologia característica das cidades que pode esvaziar o indivíduo e torná-lo mais superficial em relação aos seus sentimentos. Há, inclusive, uma evidência estrutural para isto, já que começamos a leitura em um cenário rural e livre da interferência humana, acompanhamos o personagem até a cidade, depois presenciamos a vida noturna e o trânsito urbano, para retornarmos de forma traumática à natureza na última página.
A primeira história é intitulada “Amantes Invisíveis”, trazendo um contraste com a aparência muito visível dos personagens gigantes. O tamanho, claramente, não é literal na história, como visto na cena onde o protagonista pega um envelope de tamanho normal que, de um quadro para outro, aumenta ao colocado na maleta gigante dele. Esta metáfora parece representar como o personagem, e talvez o autor, se sente na cidade, observando os outros de cima, mas sentindo-se invisível.
Há um poema de Charles Baudelaire presente em As Flores do Mal (o mesmo citado no mangá Aku no Hana) chamado O Albatroz, falando do animal que é um rei nos céus, mas suas asas gigantes o atrapalham quando está no chão. Baudelaire compara o pássaro aos artistas, que precisam viver presos com os habitantes do solo, como gigantes enclausurados. O sentimento, presente nos seres especiais e diferentes, é de não pertencer ao local onde se está, literalmente não encaixando-se por ser grande demais. Além disso, o protagonista gigante anda pela cidade como se ela fosse uma maquete, um amontoado de pessoas e locais artificiais. A moça que surge no final, parecendo ter algum passado com ele, mostra alguém que ele vê como igual.
“Haute Qouture” é o nome da segunda história. Em uma pesquisa rápida, encontra-se “alta-costura” traduzido do francês “haute couture”, mas trata-se de um título difícil de decifrar com precisão. Uma interpretação possível é que a moça da história é uma peça de qualidades raras e complexas, já que é extremamente autêntica e consciente em uma sociedade artificial. A história parece tratar desta dicotomia, com uma garota honesta e cheia de vida dialogando com um rapaz apático e superficial. Esta oposição fica clara no visual, ela negra e ele pálido como se lhe faltasse vivacidade, e na conversa, onde ele mantém perguntas rasas e ordinárias, enquanto ela tenta aprofundar-se no assunto, inclusive com balões de fala sempre maiores.
A artificialidade da conversa é exposta nos balões de fala que, em certo momento, assumem o formato de mensagens em chats, inclusive utilizando uma fonte próxima a utilizada em redes sociais e afins; e na última cena, denunciando de vez o caráter virtual da conversa logo depois que a garota pede pelo “face” de seu interlocutor. O desfecho, com uma última página que retrata a tecnologia como algo sombrio e asqueroso, traz a garota dizendo que o amor é um grande golpe publicitário, ressaltando o tema da artificialidade dos sentimentos.
Na terceira história, temos um título em japonês que significa “Pedra Filosofal”, o que pode ser uma referência ao crack. Esta história traz a definição clara dos sentimentos superficiais do indivíduo urbano, desta vez usando a ficção e a tecnologia como válvula de escape. O garoto joga a história de heróis se arriscando em uma missão importante, enquanto ele próprio está escondido atrás dos vidros do carro. Ele experimenta as sensações heroicas na ficção por meio da tecnologia, mas se mantém indiferente ao mundo a sua volta e os problemas reais.
O garoto sacia seu desejo por heroísmo em seu jogo, enquanto o mendigo que lhe pede ajuda é ignorado. Isto diz muito sobre a relação das pessoas com a ficção e como a fantasia pode soar muito menos dissimulada que a realidade. Sentimos prazer em experimentar, mas não nos preocupamos em exercer. Este embate entre fantasia natural e realidade falsa é mostrado até mesmo na fonte escolhida, muito mais arredondada e orgânica para o trecho fantástico, em contraste com a usada para os personagens do mundo real, pouco comum em mangás por ser muito quadrada e, novamente, artificial. A cena onde os heróis se tornam personagens em pixel art, um tipo de desenho totalmente artificial e tecnológico, serve para marcar esta transição entre os dois mundos.
Fechando a coletânea, temos “deutocerebrum”, que se trata de uma parte do cérebro de insetos. Foi uma ótima escolha deixar esta história por último, já que ela é a mais abstrata e esquisita, podendo tirar o foco das seguintes se estivesse entre as primeiras. Além da ótimo condução de ritmo e uma bela narrativa visual, esta história traz mais alguns pontos para o tema da artificialidade urbana e da tecnologia. O protagonista está em um cenário quase vazio, apenas com sua poltrona e sua TV, confortos comuns para basicamente qualquer homem urbano, até que seu espaço é invadido por insetos, um dos poucos elementos da natureza que nos persegue até a cidade urbanizada e é, inclusive, atraído por nossa tecnologia, mais especificamente a luz artificial.
O homem, ao ver um bolo projetado em sua televisão, coloca sua mão na tela, desejando algo puramente artificial e falso. Os insetos, da mesma forma, amontoando-se na TV quando uma árvore aparece, como se acreditassem na realidade daquela natureza projetada na tela. O homem desliga a TV, desconectando-se da tecnologia, e se torna um inseto, não apenas por manter semelhanças com estes, mas porque eles representam e são a natureza, assim como o próprio homem. Por isto, ele é jogado em um cenário natural em seguida e, ao fundo, vemos a figura do homem urbano enforcado, sem poder resistir a natureza pura e a ausência de seus prazeres artificiais.
Em suas quatro histórias, Shut Up and Listen faz uma construção sutil de seu tema, tendo em primeiro plano sua linguagem, mas conseguindo manter alguma coesão e uma estrutura analisável. Sua beleza e qualidade está em permitir que o leitor interprete cada detalhe a sua maneira, deixando-o mergulhar e se enxergar na obra. Mantendo-se fiel a seu próprio tema, ela não tenta ser artificialmente simples apenas para agradar, escolhendo brincar com a percepção do leitor, dando uma experiência sensitiva e intelectual muito complexa e profunda que aborda o mundo e nós mesmo. Há muito o que a obra pode dizer, basta que o leitor cale-se e escute.
Avaliação Final