Um mais Um: Múltipla Escolha + Harmatã

Este é o primeiro post da categoria Um Mais Um, onde duas peças artísticas serão analisadas com a intenção de criar um paralelo entre elas no final. Em geral, as obras serão curtas e contidas, podendo ou não ser da mesma mídia. Não haverão spoilers graves nas análises individuais, mas a conclusão sempre será melhor aproveitada por quem leu as obras em questão.

Desta vez, as obras escolhidas são Harmatã, de Pedro Cobiaco, e Múltipla Escolha, de Max Andrade e Marcel Ibaldo. As duas HQs são brasileiras e foram adquiridas na Comic Con Experience 2015 diretamente dos autores, mas podem ser compradas online clicando nos nomes das obras.

Múltipla Escolha

Jeff é um rapaz tentando entrar na faculdade de medicina há 4 anos, continuando no cursinho pré-vestibular enquanto seus amigos já estão próximos de receber seus diplomas. Quando ele finalmente se aproxima do seu objetivo, ficando em primeiro lugar na primeira fase do vestibular, seus problemas pessoais se mostram muito maiores que as provas, forçando-o a rever o modo como lida com as pessoas a sua volta e com seus próprios defeitos.

Primeiramente, os desenhos não são o forte do quadrinho, e nem do autor. Os traços são esforçados, bastante característicos e cômicos quando necessário, mas estão ali para servir a história. Não há cenas visualmente admiráveis e o uso de retículas densas unido com os cenários pouco elaborados remete um pouco a fanzines. Não se trata de uma arte desagradável, porém, principalmente em relação as expressões corporais e faciais, geralmente mantendo uma naturalidade cômica.

Desenhando personagens com poses e feições comuns do cotidiano, mas pouco vistas em quadrinhos, Max consegue criar humor ao brincar com o formato dos rostos e deixa seus personagens muito expressivos e humanos na maior parte do tempo. Além disso, temos a ótima capa (cores de Rainer Petter) e o título, que representam bem a indecisão do protagonista e trazem uma brasilidade interessante à obra, já que o termo “múltipla escolha” e as placas de trânsito são elementos comuns em nosso dia a dia.

Esta identificação se mostra um dos pontos fortes da obra, junto com sua acessibilidade. Por tratar de um tema tão comum na vida da maioria das pessoas, o vestibular, a história consegue se conectar até com quem nunca leu quadrinhos. Além disso, é interessante notar que o diferencial da história está em falar de algo normal, sendo original por olhar de uma maneira nova para um assunto tão próximo e corriqueiro. O fato de conversar com o leitor tão diretamente, falando de algo que ele compreende, é ótimo por ajudá-lo a pensar sobre suas próprias escolhas de uma forma menos abstrata e mais prática, ainda que esteja longe de ser autoajuda.

Toda essa naturalidade e realidade da história é auxiliada por um bom roteiro. Os elementos relevantes são geralmente apresentados de forma natural previamente para que, quando se tornarem ferramentas do roteiro, tenhamos a sensação de que tudo aquilo poderia acontecer, que tudo faz sentido. Personagens são citados em conversas que parecem irrelevantes, surgindo depois para mostrar que este mundo é orgânico e pessoas não são apenas detalhes artificiais, mas estão vivendo suas vidas fora dos quadros.

Existem problemas no roteiro, porém. O drama final, que beira ao melodrama, acaba por forçar um pouco a naturalidade da obra e serve como uma ferramenta artificial para a decisão do protagonista, inclusive exagerando nos desenhos ao expressar certas emoções no rosto dos personagens. Não chega a estragar o final, mas incomoda por destoar do que veio antes e justificar uma decisão importante com um argumento simplório.

Trata-se de uma obra acessível, perfeita para novos leitores. Seu tema é identificável, seus simbolismos são simples e facilmente compreensíveis e seu roteiro não pede muita suspensão de descrença. É um coming of age à brasileira, com uma ideia interessante e que sabe o que quer da primeira à última página.

Harmatã

Fábio é um poeta que precisou terminar um relacionamento após Luna, sua namorada, partir em uma viagem para a África. Ele recebe um telefonema dela e é obrigado a revisitar seus sentimentos, enquanto conversam sobre suas vidas e seus conflitos.

Há pouco o que se falar sobre a trama de Harmatã, pois suas 30 páginas cobrem um período curto de tempo e sua estrutura está muito mais próximo de uma poesia do que uma estória comum. Este, por sinal, é um bom jeito de defini-la: Uma poesia desenhada. Não há ambição em contar uma história complexa ou nos mostrar características básicas dos personagens, pois acompanhamos os dois protagonistas em um momento muito íntimo e efêmero de suas vidas, onde seu estado de espírito é muito profundo e contemplativo.

O autor mistura desenhos, diálogos e inserções de poemas de modo que a experiência de leitura seja única ao sentirmos a conexão entre os elementos por conta própria e experimentar os conflitos internos do protagonista como se fossem nossos, algo que se torna literal em certo momento da leitura. Como Tony Zhou diz em seu ótimo vídeo sobre poesia dos detalhes, a qualidade poética está em conseguir contar muito utilizando pouco, algo presente em Harmatã, já que temos mais quadros de natureza e silhuetas do que os personagens em si.

Felizmente, este caráter poético da obra não é do tipo exageradamente abstrato ou incompreensível. Não é tão difícil compreender o que está sendo contado, ainda que seja necessário um mínimo de interpretação abstrata para atingir as metáforas. Estas estão lá e existe um esforço para torná-las coesas, ainda que abertas para interpretação, nunca soando enfeites para uma profundidade que nunca foi pensada.

Por fim, algo que chama muita atenção na leitura é a qualidade do material físico do quadrinho. Além de ser grande em suas dimensões, as páginas valorizam o desenho rústico, a tinta mantém perfeitamente os traços disformes e o efeito de desenho com carvão. A maioria das letras são manuscritas e as experimentações só funcionariam neste formato, o que valoriza muito a identidade visual da obra. O preço pode parecer alto demais para o pequeno número de páginas, mas há um cuidado com o material que valida o investimento.

É ótimo ver o autor e a Editora Mino utilizando a mídia como uma extensão da obra e não apenas uma ferramenta. Harmatã é uma obra especial e envolvente, trazendo em suas páginas uma bela poesia; não do tipo que rima, mas do tipo que explora o interior do criador e do leitor.

Igual a:

As duas obras possuem abordagens muito diferentes. A primeira é bastante acessível, fácil para quem não lê quadrinhos, enquanto a outra é muito mais densa e pode representar um desafio até para os iniciados na mídia. Múltipla Escolha não inventa em sua quadrinização e mantém um estilo sóbrio e um visual limpo, ao passo que Harmatã é um quadrinho ímpar, criando suas próprias regras e que não demonstra medo de soar pretensioso.

Por outro lado, há semelhanças entre elas. As duas tratam de escolhas comuns na juventude, embora Harmatã não seja exatamente um coming of age, mostrando os personagens lidando com romance e incertezas primordiais. O assunto não é exclusivo dos jovens, já que qualquer momento da vida pode gerar dúvidas e indecisões, inclusive a idade de Fábio nunca é definida na obra de Cobiaco. A diferença na abordagem do tema está no âmbito, pois Jeff precisa lidar com seus problemas aos olhos julgadores da sociedade e tem conflitos mais externos, enquanto Fábio precisa olhar para dentro, lidando com problemas mais filosóficos e psicológicos.

Os dois tem conflitos envolvendo suas namoradas, tendo no romance um catalisador para a história e os personagens se desenvolverem. O que os dois relacionamentos trazem é o embate entre a vida pessoal e a vida profissional; o indivíduo como ser sociável e seus sentimentos, contra o lado utilitário do indivíduo e seus objetivos. O protagonista de Múltipla Escolha conclui que suas relações pessoais são mais importantes que seus objetivos profissionais, enquanto Lua parte para longe de seu namorado por uma decisão profissional, mas não consegue se desprender emocionalmente dele.

A sociedade em geral sempre incentiva seus jovens a perseguir seus sonhos, mantendo assim sua individualidade e algum nível de egoísmo, mas parece exaltar igualmente um altruísmo e sentimentalismo, gerando um conflito de interesses. No caso dos personagens em questão, eles se veem em uma situação onde os dois conceitos precisam conviver. Eles precisam encontrar seus sentimentos pelo outro em sua individualidade, de modo que apenas conseguem entender o outro ao olharem para si e se compreenderem.

Apenas dois inteiros podem construir um par e estas são histórias de pessoas se tornando inteiras.

Um comentário

  1. Muito interessante a análise. Venho acompanhando o blog há algum tempo (pouco) e tenho achado ótimo como alguns temas são abordados aqui.

    Quanto as obras: “Harmatã” eu não conhecia e li algo sobre “Múltipla Escolha” no Universo HQ. Aliás, acho o Max Andrade um grande exemplo de persistência nesse mundo do quadrinho nacional. Tá por aí há bastante tempo, sempre produzindo. Deve ter aprendido com os shonens, 😉

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