Existem várias formas de apreciar arte, seja se aprofundando nos subtextos ou aproveitando a companhia dos personagens por alguns instantes. É senso comum respeitar o modo como cada um absorve suas mídias preferidas, mas seria hipócrita fingir que todos concordam nas várias formas de acompanhar suas histórias. Não é correto, nem possível, impor um jeito universal e perfeito para a apreciação de arte, mas vale a pena discutir e apresentar pontos de vista sobre o papel do público na arte e como isso afeta, ou não, a autoralidade das obras. Darei aqui algumas opiniões que surgiram subsequentes do podcast sobre fãs, onde alguns dos pontos são discutidos.
Primeiramente, tudo começa no artista. Antes de chegar no público, a obra precisa ser idealizada por seu autor que deverá usar toda a sua capacidade mental e sentimental para colocar suas ideias no papel. Depois de produzida, a obra chega ao leitor, ouvinte ou espectador, deixando a ele a tarefa de completar a arte como receptor. Nestes termos, não é absurdo dizer que arte é um meio de comunicação, como uma ligação telefônica. A diferença primordial é que a arte transmite muito mais que o som da voz, mas o que há de mais profundo e complexo na mente do autor, algo difícil de compreender e fascinante de descobrir.
Imagine que eu descubra o número do celular de Usamaru Furuya e ligue para lhe perguntar seus pensamentos e sentimentos a respeito da relação da humanidade com a religião. Em primeiro lugar, eu não entenderia uma palavra do japonês dele, mas mesmo se entendesse, seriam apenas palavras frias e cruas de um homem. Porém, no momento que acabei de ler The Music of Marie, não apenas via o que ele via como também sentia o que ele sentia. Com um pouco de esforço, pude absorver a alma da obra e, por consequência, parte da alma do próprio Furuya.
Nestes termos, podemos definir produto também. Muitas vezes pode parecer que o produto é uma antítese da arte, inclusive criando o falso maniqueísmo do mercado frio e ganancioso contra os artistas profundos e geniais. A verdade é que não há qualidade essencial em arte ou produto, são apenas conceitos que podem ser usados de várias formas, e se a arte é um tipo especial de ligação telefônica, o produto é o próprio telefone. É possível para todos ter uma visão artística de um objeto ou situação, mas a arte só será completa quando o artista produzir, usar o telefone para transmitir suas ideias. Caso contrário será como tentar ter uma conversa usando um telefone imaginário.
A arte pode existir sem a produção, pois uma árvore, uma cidade, uma pessoa ou um céu azul podem ser presenciadas por um bom observador como a mais tocante poesia ou o mais belo quadro, porém será uma experiência etérea e finita. Por outro lado, este mesmo observador pode se tornar um criador no momento que desenha a árvore, filma a cidade, escreve sobre uma pessoa ou fotografa o céu azul. Com competência, ele poderá transmitir sua experiência e alguns poderão se conectar e sentir o mesmo, ou interpretar as sensações de uma maneira nova e inesperada. Documentários ou fotografias exemplificam esta tênue fronteira entre criador e observador, visto que o autor observa um fato, não criado por ele, e produz a obra para transmitir sua visão.
Dito isso, há uma visão pautada no consumo envolvendo a arte e gerando algumas discussões e dúvidas interessantes. A arte e sua essência dependem do produto para serem transmitidas, de modo que um papel transparente em um mangá é como falar no telefone com sinal fraco. Entretanto, é preciso pedir mais do que qualidade do produto para manter a autoralidade. Com mangás ou livros há maior facilidade em ouvir a voz do autor com clareza, ainda que algumas vezes haja um editor com uma tesoura no fio para qualquer deslize. Porém, em mídias com uma produção mais complexas como cinema ou TV, é como se tivéssemos recebendo a ligação de um coral que precisa estar em perfeita sincronia para construir uma obra coesa e uma mensagem clara, caso contrário a falta de autoralidade pode trazer problemas para a obra.
O real problema está em um aparente gosto de boa parte do público por telemarketing. Quando a pessoa está com um problema de tédio ou cansaço, ela disca o número e aguarda ser atendida de maneira cordial, com muita educação e simpatia, com perguntas e respostas simples, para desligar o telefone feliz por ter resolvido seu problema e pronta para avaliar a ligação como um serviço. Assim, as pessoas esperam simplesmente ser agradadas em obras feitas para alguém e não por alguém. Claro, este tipo de conteúdo precisa existir e todos vão apreciá-los uma hora ou outra, mas isto não deve ser a base de referência, pois a arte precisa ser capaz tanto de irritar e deprimir quanto de alegrar e empolgar.
Vivemos um momento na história onde há um grande mercado do hype, com sites e canais que se sustentam apenas em fotos, vídeos e textos sobre filmes que irão sair, contribuindo com a ideia de que o público deve esperar por algo e ser recompensado, obrigando o filme a valer o dinheiro do ingresso. A ida ao cinema, por exemplo, pode ser um produto, incluindo a qualidade da tela, do áudio, do assento e do atendimento, mas o filme em sua essência, a experiência que o autor desejou transmitir, constitui uma porcentagem ínfima do preço do ingresso, inclusive quando olhamos a porcentagem destinada ao direito autoral, pois arte não pode ser convertida em dinheiro pelo quanto agrada ou por sua qualidade.
O público não precisa e não deve ter apenas o que quer, pois ajuda a matar a autoralidade das obras quando pede por isso, fazendo os estúdios e editoras inovarem cada vez menos e diminuir a liberdade dos autores que não se encaixam no padrão comercial. E, fora o impacto que isto tem na indústria, essa conduta torna o próprio observador menos fértil para formas e conteúdos novos, dificultando a análise do que a obra é e focando no que o trailer pareceu prometer ou o que cada um queria que ela fosse. A conexão com o público, embora complete a obra, deve ser a consequência, não a causa; enquanto o autor, em qualquer época ou lugar, tem liberdade para extrair das profundezas de sua mente a mensagem que quiser e torcer para o público ouvir a voz da sua alma.
Isto é o que arte é, uma conversa que não se baseia em palavras, mas em sensações e ideias que só poderiam ser reveladas desta forma. A boa arte se torna a melhor maneira de se conectar com algo ou com alguém, viajando no tempo e no espaço para conhecer o universo interno do autor. E, embora isto pareça um tanto vago ou filosófico demais, esta essência não precisa ter toda a complexidade da mente do autor, sendo apenas um fragmento dele, como sua relação com seu pai, sua visão do futuro ou, obviamente, sua opinião sobre como observar arte.
Quando desligar o telefone, quem está do outro lado poderá se descobrir indiferente ou discordar da mensagem; ou ter mais conhecimento sobre suas ideias e evoluir por meio do que ouviu.
E então?
Como disse Italo Calvino, “Os clássicos são livros que nunca terminam de dizer o que têm a dizer.” Adaptando para o contexto do texto, eles estão sempre conversando com o público. E não é que tem gente que acha chato quem fala demais?
Texto interessante, mas uma coisa que me incomoda na leitura dos seus é o texto não justificado. Tenta pôr no justificado no próximo.
Obrigado pela dica. Nunca pensei a respeito, nem quando leio textos em outros blogs, pra mim não faz muita diferença. Vou passar a justificar agora, não deve piorar nada.
muito bacana esse texto, queria eu ser capaz de escrever com essa mesma eloquência
sempre vale aquela discussão, ate que ponto entendemos a mensagem do autor,e se é que o autor quis passar uma mensagem
por exemplo o famoso quadro do relógio derretido de salvador dali http://www.lpm-blog.com.br/wp-content/uploads/2011/03/Melting_Clock09.jpg
que de acordo com o pro pio salvador dali esse quadro representa “Toda a minha ambição no campo pictórico é materializar as imagens da irracionalidade concreta com a mais imperialista fúria da precisão”
Recentemente li uma discussão no famoso tv tropes, sobre como diferenciar uma obra densa de outra pretensiosa achei interessante a observação de um usuário que comparava com uma caverna: A densa: seria aquela caverna extensa e profunda, que a cada nova exploração mais câmaras, atalhos, e saídas são descobertas. Já a Pretensiosa: seria uma parede com uma pintura de caverna grande e profunda…. Seria interessante ver um texto seu sobre esse assunto.
Eu não sei por que o pessoal faz essa distinção se uma coisa não necessariamente tem a ver com a outra (talvez eu esteja sendo pretensioso nesse sentido aí que você e os caras do tvtropes puseram, mas vamos lá). Tenho por mim que a obra densa, profunda, pode ser aludida aí isso que o pessoal alegorizou. Mas no caso daquilo que é pretensioso, o adjetivo já não diz? É uma pretensão, uma ambição, algo que quer ser outro algo de qualidade maior ou às vezes até menor. Nisto pode ser qualquer coisa, não só “ser profunda”.
(Acho que o mistério desse adjetivo para qualificar narrativas veio de pessoas que de alguma forma… Argh, é uma discussão que acho que não vai chegar a lugar nenhum. Falar de pretensiosismo é metapretensioso.)