Ritmo e poesia são elementos presentes em quase todas as músicas que já ouvimos, mas estas duas palavras que definem o RAP em sua essência. Há trabalho em compor as batidas e o instrumental, mas tudo que é vital ao rapper como artista está em suas ideias e suas rimas, e estas precisam de coesão a naturalidade para envolver e agradar o ouvinte. Em mídias narrativas, esta qualidade possui um paralelo com o Roteiro, mais especificamente na construção de elementos da narrativa, como versos, para levar o leitor de forma fluida pelo caminho que a história escolheu.
Ao invés de escolher apenas um álbum e um mangá para descrever as semelhanças nos temas, apresentarei algumas músicas de artistas diferentes, todos nacionais, e exemplificarei a semelhança entre construção de rimas nos raps e eventos fictícios em mangás. Obviamente, músicas não são iguais a roteiros e, ainda que seja possível analisar rimas desta forma, o valor poético deve ser maior que o valor narrativo.
Recomendo que ouça as músicas por inteiro antes de ler o que vem abaixo, atentando para as rimas e seu ritmo. E, caso goste da música, ouça os ótimos álbuns inteiros.
Póesia – Inquérito (Corpo e Alma)
Uns vêm de carro, outros vêm de bike, nós vende pó… esia e só.
Nos livros, nos discos, nos pinos, no papel
Transformei um grupo de rap num cartel.
Era tudo que eu tinha e essa foi minha cota
Fazer folha de caderno valer mais que folha de coca.
Este trecho começa trazendo uma brincadeira com a ambiguidade dos sons das palavras, construindo algo que poderia ser comparável a um plot twist. Temos as duas primeiras partes da frase, onde ficamos na dúvida se estamos ouvindo “vende”, no sentido de vender, ou “vêm de”, nos sentido de locomoção. A escolha de meios de transporte, “carro” e “bike”, foi feita para nos levar a crer que trata-se de locomoção, mas quando o verso parece acabar em “vende pó”, notamos a ambiguidade do que ouvimos até ali. Agora, acreditamos que deste o começo tratava-se de “vender”, quando há um segundo plot twist, desta vez usando uma pausa pra mudar o sentido de “pó”, que seria apenas uma referência a cocaína, e brincar com as expectativas. O verso segue a ideia de tratar o artista, mais especificamente o rapper, como um traficante da informação e da poesia, análogo e oposto aos criminosos.
Estruturalmente, podemos comparar o primeiro verso ao modo de construir elementos do mangá The Music of Marie. No começo, a construção é dúbia, de modo que conseguimos compreender, mas sentindo uma incerteza sobre os elementos construídos diante de nós. No fim, há revelações que nos fazem compreender o que estava acontecendo, para logo em seguida haver uma segunda revelação que muda a percepção do leitor a respeito dos elementos anteriores. A coesão é mostrada de forma satisfatória, mas com um construção particular que brinca com as percepções do leitor ou do ouvinte.
Agressivo, mais que policial de plantão
Só um aviso: se Elvis não morreu, nós também não.
O funk pode até ser a trilha das quebrada
Só que o rap é muito mais que trilha, é estrada.
Este verso, que termina a música, traz uma semelhança leve com um elemento específico de One Piece. Em seu primeiro capítulo, o mangá nos mostra um perigoso monstro do mar que surge de repente, sem construção prévia. Ele é utilizado para gerar um conflito no roteiro e, principalmente, terminar o capítulo em uma cena de ação. Luffy crescido derrota o monstro que antes parecia uma ameaça imbatível, mostrando a evolução do poder dele em uma símbolo rápido e eficiente.
O penúltimo verso surge sem tanta construção, parecendo fora de contexto. Porém, a rima se completa de forma satisfatória, concluindo a poesia com mais uma brincadeira interessante com as palavras, desta vez mudando o significado de “trilha”. Além disse, a rima em si é muito orgânica, sendo difícil prever a palavra que rimará com “quebrada” e terminando com uma ideia muito forte, de que o rap leva para lugares como estradas, enquanto o funk surge, como uma trilha, simplesmente porque muitos decidiram passar pelo mesmo caminho. Assim, é um verso tão forte quanto um Gomu Gomu no Pistol.
Nóiz – Emicida (O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui)
Deus ajuda quem cedo madruga pro turno
Imagina o que ele vai fazer por mim quando ganhar que eu nem durmo
Nem percebo se é diurno, noturno
Na campana igual soldado, de metranca, coturno.
O primeiro verso traz um última elemento estranho. A ditado popular “Deus ajuda quem cedo madruga” termina aí e o resto “pro turno” se torna claramente um elemento extra para validar a rima seguinte. Desta forma, o ritmo natural é quebrado. Para construir esta naturalidade, cria-se uma espécia de suspensão de descrença, onde fingimos que o objetivo do autor não é simplesmente rimar, mas passar suas ideias, enquanto as rimas surgem de forma orgânica. Isto existe também em roteiro, quando o autor planta um elemento na trama e devemos entendê-lo como parte da narrativa, para ser reutilizado no futuro de forma orgânica. É um equilíbrio muito específico entre dar uma pista de forma sutil e recompensar o leitor com a consequência lógica e, ao mesmo tempo, surpreendente.
Este tipo de elemento extra no começo, que aqui é “pro turno”, é análogo ao tipo de construção utilizada para criar mistérios de forma artificial, mas eficiente. Em Death Note, por exemplo, logo no primeiro capítulo somos apresentados a L, mas sem mostrar seu rosto. Trata-se de uma única página e não há nenhuma informação vital, de modo que a página em questão poderia ser descartada sem prejuízo para a trama. O elemento extra, porém, serve para deixar o leitor curioso e pode servir de fio condutor, ainda que artificial, para elementos futuros. Tanto em Death Note quando no trecho da música em questão, o que vem a seguir valida o uso deste elemento extra, construindo algo bom. A sequência de versos é inteligente e fluida, com ideias que se conectam naturalmente e uma inserção de tiros que empolga no final.
Há, obviamente, o mau uso deste elemento extra quando que se segue é ruim ou quando a rima é muito óbvia. Em Bleach, por exemplo, os Quincys são construídos desde o começo, mas nunca fica claro se eles realmente serão importantes, soando como um extra mais descartável que o normal. E quando a rima chega, vemos que nada da construção valeu a pena.
Eu sei que a rua tá cheia de filho da puta igual eu
Que não suporta mais a mesmice que se estabeleceu
Rap se tá mereceu, se quem eu citar pereceu
É porque vários dos vivos não faz jus, meu.
Aqui, novamente falta naturalidade para a rima. O trecho começa bem, com rimas rápidas e ideias interessantes. Porém, cria-se certa expectativa para a naturalidade se manter até o fim, até que, apenas para concluir a rima de forma fácil, é incluído um elemento extra genérico. Felizmente, tratam-se de ideias interessantes que são transmitidas bem, deixando a desejar apenas em suas conclusão.
Por outro lado, temos Zetsu em Naruto, que tem uma construção parecida, embora o mangá não peque apenas nisso. Este personagem surgiu relativamente cedo no mangá, sempre com um ar de mistério, um design muito curioso e, embora geralmente fosse utilizado como ferramenta pelo roteiro e pelos personagens, havia uma esperança que sua conclusão conferisse alguma profundidade ou coesão a ele. Entretanto, no fim, ele se tornou apenas um extra, que serviu para conectar os pontos e gerar a rima, mas de forma artificial e decepcionante. Ele foi de membro misterioso da organização secreta a simples carta na manga dos vilões.
Se o Mundo Acabar – Rashid (Que Assim Seja)
Por cada garota que vem de onde eu venho
Por cada escravo que correu do engenho.
Eu fiz, eu faço e ainda vou fazer
Todo suor derramado vai ter que valer
Porque se confundem com dinheiro, meu valor não ta na nota que cê tem no bolso
Ta na mente, ta no peito, ta na força que é pra gente conseguir fugir do calabouço
Ouço por favor (não), minha tropa agora não ta precisando de reforço
Foram muitos anos, mas nós conseguimos tirar a corda no nosso pescoço.
Este trecho da música começa falando sobre escravos e segue mantendo o tema de liberdade, basicamente sobre tirar peso das costas. O penúltimo verso sobrevive bem sozinho, a frase não está com uma ordem de palavras forçada apenas para terminar em algo que facilite a rima. E, antes disso, “bolso”, “calabouço” e “ouço” haviam construído bem a rima, sem nenhuma artificialidade a se destacar. No fim, o trecho termina com “tirar a corda do nosso pescoço”, concluindo o tema e inserindo uma vírgula surpreendente e coesa com a respiração de quem recupera o fôlego.
Nos mangás, o magnífico one shot Hotel traz uma construção comparável. Primeiro, ele dá o nome ao robô, Louis, algo bastante natural e que, como os últimos versos, sobrevive por si só, sem construir artificialmente para nada. Uma personagem cita Loius Armstrong e sua famosa canção “What a Wonderfull World”, inserindo mais uma dica tão sutil que sequer soa como uma dica. E finalmente, temos a rima na recompensa das dicas dadas até ali, com a sequência mais emocionante do mangá, em que a letra da música permeia as páginas que mostram o fim do mundo como conhecemos. E, como no rap, temos uma vírgula surpreendente e coesa, algo que precisa de uma construção muito sutil e orgânica para ser alcançado, deixando o leitor perceber a rima apenas quando ela termina.
Quanto tempo cê perdeu dormindo?
Quanto tempo cê ganhou vivendo?
Quantos dias você viu caindo?
Quantos sóis você viu nascendo?
Citando Naruto mais uma vez, mas a respeito de uma das melhores rimas do mangá. Assim como o trecho acima, a rima em si não é especialmente complexa e talvez sequer tenha sido planejada com cuidado. Rimar com gerúndio não é uma tarefa particularmente difícil, assim como criar um contraste entre Sasuke e Naruto, mas a ideia que as duas rimas passam e a coesão entre elas são qualidades dignas de nota. Todos os versos funcionam bem sozinho, tanto os dois primeiros quanto os dois últimos, transmitindo suas ideias sobre o modo como aproveitamos ou não a vida. Da mesma forma, tanto a primeira cena onde Naruto revê a Vila da Folha quanto a cena onde Sasuke faz o mesmo podem ser aproveitadas de forma independente, mas apenas juntas criam a rima e aumentam a força das cenas, principalmente ao mostrar que o primeiro sente-se em casa, dizendo que nada mudou, enquanto o segundo acredita que tudo mudou e ali não é mais o seu lugar.
Por fim, nesta experiência multimídia, notei um ponto vital em qualquer arte que queira parecer orgânica e natural. A suspensão de descrença deve ser alimentada para que o leitor permaneça envolvido pelos elementos da obra e esqueça que aquilo se trata de um produto da mente do autor, puramente artificial e matematicamente projetado para passar suas ideias e emoções. Para isto, é necessário coesão e sutileza nas construções, para que possamos sentir universos ficcionais como uma espécie de realidade e poesias como discursos viscerais e orgânicos. Afinal, a vida imita a arte porque a arte imita a vida.
Parabéns, já esperava um post seu com esta temática, desde o primeiro manga² de Roteiro (que se não me engano você sitou a semelhança entre o Rap e alguns aspectos do roteiro). De qualquer forma um texto muito bem escrito.