Os Traços de Haikyuu!!

Desde seu começo, Haikyuu!! vem chamando muita atenção dos fãs de mangás e, recentemente, animes. O mangá possui um roteiro afiado, um desenvolvimento de personagens coeso e uma narrativa visual empolgante. Esta última característica será o ponto desta análise, focando nos recursos utilizados pelo autor para compôr as páginas do mangá, algo pouco discutido por parecer puramente subjetivo e espontâneo. Para evitar spoilers pesados, tratarei apenas de páginas presentes até o terceiro volume.

Existe um fenômeno quase subconsciente em relação a desenhos que prejudica traços mais estilizados. Traços mais realistas, como os de Takehiko Inoue, Shinichi Sakamoto, Kentaro Miura e Takeshi Obata, são aceitos como bons de forma quase unânime, já que o leitor subentende um esforço em recriar a realidade e estabelece uma identificação fácil com os personagens. Obviamente, existem outras qualidades que os desenhistas citados demonstram para serem admirados, além de evitar o vale da estranheza ou um visual exageradamente fotográfico.

Do outro lado, obras com traços que fogem do realismo dificilmente alcançam unanimidade. Obras infantis ou cômicas são compreendidas e aceitas mais facilmente quando utilizam a disformidade de seus personagens para contar suas histórias de forma caricatural e relaxada. Entretanto, quando as obras utilizam anatomias, poses e movimentos mais livres em histórias vistas de maneira séria, há um entendimento básico de que o traço é pior ou menos esforçado. Assim, adjetivos como “relaxado” ou “solto” ganham um significado pejorativo e as obras ganham críticos, como é o caso de HQ!!.

Haruichi Furudate, desenhista e roteirista, possui um tipo de traço muito singular e é frequentemente criticado por sua estilização. Isto, porém, é uma de suas grandes qualidades e, diferente de inúmeras outras obras, seu traço possui um motivo para as distorções anatômicas. Seguindo um conceito presente em animações, distorcendo as formas para causar uma ilusão de movimento ou impacto, o autor cria momentos onde podemos sentir a corrida e a cortada não apenas pela sequência de quadros, mas pelo formato dos personagens.

Na página acima, por exemplo, temos Hinata correndo para cortar a bola. Em vez de utilizar linhas de movimento para demonstrar a velocidade ímpar do protagonista, o autor opta por repetir o personagem, mantendo uma limpeza no quadro. O formato do personagem neste primeiro quadro é o outro recurso usado para nos transmitir a sensação necessária para torna a cena dinâmica, neste caso escolhendo uma pose especificamente angulosa, enchendo o personagem de pontas e esticando seus membros para torná-lo quase uma flecha humana. Isto está longe de ser realista, mas não precisa ser para cumprir seu objetivo, beneficiando-se exatamente da forte estilização.

Furudate também utiliza um tipo de traço muito específico para suas cenas chave, outro paralelo possível com animação. Por ser publicado em uma revista semanal, a Shonen Jump, o autor sofre com o tempo como os animadores e, para isso, criou uma estrutura de capítulos com quadros parecidos com os keyframes, os frames de animação trabalhados com mais esmero por sua maior importância. Em Haikyuu!!, Furudate utiliza este problema a seu favor e, embora as páginas comuns não sejam exatamente malfeitas, as cenas mais relevantes impressionam pela singularidade.

Não é difícil notar o que torna as páginas duplas ou outras páginas de climax dos capítulos tão boas. O autor engrossa seu traço e dá um tom mais rústico, destacando o preto para transmitir força e, principalmente, impacto. Isto soa extremamente calculado e estudado, se aproximando do limite do exagero, mas mantendo as cenas extremamente compreensíveis. Além deste impacto individual, estes momentos se tornam ainda mais interessantes na leitura por servirem como uma espécie de recompensa aos leitores, o momento onde a tensão e a empolgação atingem o máximo, quase como um refrão gritado em uma música empolgante.

Não é apenas no traço que o autor cria essa sensação de recompensa, mas também no ritmo dos capítulos. Embora soe, sim, como um refrão em certos momentos, há muitos casos onde páginas duplas surgem como uma surpresa em uma construção de tensão crescente ou simplesmente uma situação puramente inesperada.

Como exemplo, temos a página onde o personagem Nishinoya é apresentado. A situação do capítulo funciona como uma música graças ao roteiro, começando com Kageyama treinando seu saque mirando em uma garrafa na ponta oposta da quadra. Hinata surge e surpreende seu companheiro com uma recepção de manchete desastrada. Em seguida, na segunda tentativa, Kageyama é novamente surpreendido, agora por Nishinoya, caracterizando uma rima no roteiro. Além de ser uma situação muito orgânica, visto que o primeiro “verso” da música (Hinata e sua recepção) funcionaria isoladamente, a rima revela uma semelhança entre Hinata e Nishinoya, o entusiasmo instintivo pelo vôlei, e uma diferença, a habilidade na recepção. A página em questão surge como uma surpresa e o número preciso de quadros nos dá a dinâmica da cena, servindo como um bom climax visual para o capítulo.

Outro recurso muito bem utilizado em quase todas as páginas do mangá são os ângulos inteligentes de Furudate. A própria página de apresentação de Nishinoya traz um ângulo que apresenta o personagem de costas, algo quase heroico, e mostra a bola e o sacador, os elementos relevantes da cena, com clareza.

Isto se repete, demonstrando que o autor precisa de poucos quadros e nenhum diálogo expositivo para apresentar ações complexas e completas. Com momentos chave e representações simples do movimento da bola conseguimos compreender o que causou o que e quem está indo pra onde. E seria fácil para o autor se perder nesse tipo de abordagem e criar cenas extremamente desagradáveis do ponto de vista estético, escolhendo ângulos mais didáticos do que empolgantes, mas ele encontra o equilíbrio perfeito entre exposição e impacto, utilizando todos os recursos de uma página para transmitir uma mensagem e uma sensação.

Fechando esta pequena lista de recursos bem utilizados por Haikyuu!!, temos o elegante uso das cores. Mangás, em sua maioria, possuem apenas preto, branco e tons de cinza e muitos leitores, e autores, ignoram o equilíbrio destas cores. Furudate consegue passar muita segurança nos contrastes que faz, deixando seus desenhos muito compreensíveis e agradáveis. Ainda que o conceito de “beleza” seja bastante subjetivo, não se pode ignorar o esforço do autor em não sobrecarregar uma página em um único tom e tentar manter uma proporcionalidade na quantidade de preto, branco e cinza.

Quando precisa focar em uma única ação específica e simples, ele sabe ignorar elementos supérfluos, substituindo o cenário por branco, por exemplo, e destacar com um tom sólido de preto o que importa, sem esquecer do cinza para manter as cores simétricas. Em contrapartida, ele também consegue expor situações mais complexas de forma clara e equilibrada ao manter o cenário presente em tons mais escuros de cinza e manter os personagens predominantemente em preto e branco. Soma-se a isso o já citado traço mais grosso, linhas de movimento incorporadas a retícula e divisões orgânicas entre personagens e cenário para que tenhamos páginas matematicamente bem estruturadas e memoráveis.

Aos fãs exclusivos do anime, digo que a leitura é muito única e que empolgará qualquer um que compreenda a proposta do autor e o modo como ele utiliza seu próprio estilo. Merecendo todos os fãs e elogios que angariou ao longo de sua curta vida, o mangá deverá ser lembrado até o seu fim e depois. Haikyuu!! é especialmente envolvente e deslumbrante, de modo que qualquer um que mergulhe em suas páginas poderá ver suas qualidades. Ou, no mínimo, senti-las.

6 comentários

  1. Ironicamente, os desenhistas que distorcem a figura do personagem para ilustrar movimento são os mais realistas do que os ditos “realistas”. Pois, segundo a física, se um objeto com massa ganhasse velocidade aquém da luz, ele se distorceria. Pressupõe-se então que qualquer movimento veloz tem essa ilusão de que o objeto em movimento, desde que tenha massa, está se distorcendo (e está mesmo!). Até em desenhos antigos, como o do próprio Papa-léguas, esse conceito da física é aplicado.

  2. Cara em geral os desenhos dele sao incriveis, mas as vezes ele peca nos rostos, desenha os olhos completamente tortos, isso é a única coisa que eu critico no mangá, a quadrinizacao é ótima.

  3. pra min a movimentação é meio travada , muitas vezes não consigo entender como foi feita a jogada e preciso voltar umas paginas pra poder entender

    e me incomoda profundamente esse vulto branco em volta dos personagens, fica parecendo que os personagens foram recortados e colados no cenario

  4. No início da série eu via muitas pessoas reclamando da reticulação excessiva de HQ, o que não combinaria com um “shonen de esporte” Talvez seja uma herança da última obra dele (um mangá de terror). Eu pessoalmente gosto do trabalho dele com retículas, não acho que o visual fique sobrecarregado.

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