Parece uma afirmação segura dizer que as tirinhas são o formato de quadrinhos mais expressivo na internet. Elas são dinâmicas e curtas, facilitando a absorção do público da web e gerando uma liberdade na composição visual e narrativa. Tiras verticais, horizontais, com gifs, coloridas, bonitas, feias, com memes; uma infinidade de possibilidades que são exploradas pelas redes sociais, blogs e qualquer outra plataforma.
A mais recente a chamar a minha atenção está no webtoon.com. Criada por It Sun, chama-se All That We Hope to Be (basicamente “Tudo que esperamos ser”). A obra apresenta personagens, representados como animais, lidando com os problemas da vida adulta e refletindo sobre sonhos, trabalho, relacionamentos e autoconfiança. As tirinhas podem ser lidas no site oficial, mas seu formato é pensado para o aplicativo mobile, onde o ritmo e o traço ficam mais fluídos.
Começando daí, a estética de ATWHtB é muito convidativa e viciante. Cada “quadro” ocupa uma única página, de modo que conseguimos dar a atenção precisa para os singelos desenhos antes de pular para os próximos. O desenho tenta ser o mais orgânico possível, utilizando-se de aquarela e aparentes traços de pincel para compôr seu visual cinza e suave.
Por usar animais para contar as histórias, perde-se um pouco da expressividade na face dos personagens. Porém, mesmo que pareça um defeito, isto ajuda para que o leitor projete a si mesmo nos animais. Além disso, há momentos em que os animais são desenhados de outra forma, com mais detalhes nos pelos e menos suavidade no traço, algo que não incomoda, mas também não demonstra grande utilidade.
Já a estrutura narrativa é bastante curiosa, misturando o formato das tirinhas com histórias contínuas e coesas. Cada capítulo é separado em pequenas subdivisões; uma muleta para evitar a necessidade de criar uma ligação lógica entre os fatos, incomodando um pouco nos momentos que a divisão soa desnecessária. A cada 5 ou 6 páginas, uma leve conclusão é mostrada e um número no topo da página indica que uma nova tirinha começou, mesmo quando a trama segue ininterrupta.
Felizmente, cada capítulo consegue manter uma mínima coesão dentro de si e tratar temas específicos de forma sólida e tocante. É como um livro de poesia, onde cada uma delas pode ou não ter relação com as outras, mas cada uma tenta manter sua individualidade. E quando há um arco mais longo , experimentamos outro tipo de sentimento, formando uma grande poesia que só funciona no conjunto.
Os personagens de ATWHtB carregam uma humanidade incomum, pois são animais desenhados de forma simples, sem muitos traços humanizados e definidos basicamente pelos diálogos; inclusive dependemos de conversas para saber quais são machos e quais são fêmeas, por exemplo. Ainda assim, não é difícil se identificar com as reflexões e perceber as inseguranças e questionamentos de cada um deles, pois é isto que define a personalidade deles para o leitor.
Cada um dos personagens possui um conflito característico que é desenvolvido ao longo da obra, como a gata Joule, que lembra a protagonista de Annarasumanara e seus problemas com dinheiro e responsabilidades; a raposa Son, um poeta que tenta conciliar sua carreira artística medíocre com sua preguiça cheia de convicção; ou ainda o divertido Teacup, um cãozinho fofo que adora xingar e falar palavrões, mas que se revela um tsundere. E o mais interessante é que estes personagens frequentemente se encontram, trocam experiências e se auxiliam em seus problemas, como a ótima história de Teacup e a ratinha Tiny, com uma mensagem final realmente relevante e identificável.
É fácil se colocar no lugar dos personagens e pensar que a obra é feita para você, algo que parece intencional. Um sentimento parecido é visto em tirinhas mais simplórias, como aquelas que utilizam meme faces para retratar de forma cômica situações cotidianas. É possível criar um paralelo entre os dois estilos, já que em ambos terminamos a breve leitura com um sentimento de nostalgia ou forte identificação, do tipo que gera comentários como “sou muito assim” ou “muito eu”. Nos dois casos, usamos as tirinhas para reafirmar nossas ações e pensamentos ao notarmos que não estamos sozinhos, que mais alguém pensa, faz ou sente o mesmo que nós.
A diferença está, obviamente, na reflexão e na intenção. Uma tirinha de memes geralmente não tem como objetivo nos fazer pensar sobre os fatos, ela apenas retrata a realidade da maioria de uma forma cômica, como um espelho que distorce o reflexo; enquanto o autor de ATWHtB parece querer passar a sua própria realidade, seus conflitos e suas ideias, deixando para que o leitor se relacione ou não com isto, além de retratar momentos muito mais significativos da vida dos personagens.
Ainda assim, não há como saber com exatidão a intenção do autor e em alguns momentos a obra de It Sun soa exatamente como uma destas tirinhas de identificação pura e simples. A qualidade nestes casos está exatamente na poesia, no formato da representação e na escolha do que será refletido. Ele não quer apenas divertir; embora tire algumas risadas pontuais; e sim nos fazer pensar sobre a leitura e sobre a nossa vida, nossos conflitos e fraquezas.
Particularmente, eu pude me identificar fortemente com as questões tratadas e acredito que qualquer um pode se ver em alguma delas, principalmente pelo existencialismo que a obra carrega. O primeiro capítulo, categorizado como prólogo, trata das qualidades de morrer, algo que eu imagino que qualquer pessoa honesta consigo mesma já parou para pensar. E mesmo assim, eu não diria se tratar de uma obra pessimista, já que o autor compreende a natureza apática e derrotista de seus personagens, colocando contrapontos frequentes e brincando com a situação.
No final de muitas tirinhas, eu senti um estalo dentro da minha mente, aquele que é ativado quando somos apresentados a uma sacada surpreendente; e isto nem sempre vinha com uma risada ou nostalgia. Se tratava de uma sensação agridoce causada por uma visão clara da vida exposta ali, sem exageros depressivos ou ideais forçados. Por esta sensação, eu acredito que esta obra é perfeita para qualquer um que possuí dúvidas ou questionamentos em relação a sua vida e sua posição no mundo; ou seja, todas as pessoas do mundo.
Muito bom = (
Valeu pela recomendação, vou atrás!