A violência na arte sempre é um assunto polêmico para o grande público, envolto em sensacionalismo e hipocrisia. É bastante lógico afirmar que a individualidade de cada pessoa define seus atos, mas é preciso enxergar que a arte não é um elemento banal na vida de seus consumidores. Afirmar que um jogo causa assassinatos é tão equivocado quanto afirmar que o mesmo jogo nunca diz algo sobre quem o joga.
Existem muitas obras que usam, ou abusam, da violência e um punhado delas decide dar um passo além e levantar discussões sobre o uso desta na ficção, ou mesmo sobre o valor dela na nossa sociedade. Estas poucas podem dizer algo sobre a nossa relação com esta violência falsa, desde que estejamos abertos para ouvir.
Violência e Imersão
Algo comum a maioria das obras de ficção que consumimos são certas escolhas de estrutura que facilitam a identificação do observador e a narrativa dos fatos. O conflito é um destes conceitos básicos e não é raro que gerem embates físicos, resolvidos com socos, tiros e super poderes. Nestas obras, a violência tende a aparecer mais abrandada para que aceitemos aquilo como diversão, mantendo a imersão naquele mundo fantasioso. Ainda assim, é violência.
Muitos filmes optam, por exemplo, por evitar sangue e fingir que seus personagens possuem ossos indestrutíveis, ao mesmo tempo que tentam manter uma lógica no roteiro para que aceitemos tudo aquilo como realidade. E geralmente aceitamos, pois estabelecemos uma troca entre nossa suspensão de descrença seletiva e a experiência imersiva que o filme proporciona.
Este imersão ganha um novo nível em jogos, já que estamos literalmente dentro da obra, somos responsáveis pelas ações do personagem e podemos até escolher o modo como as situações ocorrem. O jogador insere seus sentimentos na obra, como em qualquer outra mídia artística, porém há um ônus na experiência quando o jogador e os realizadores tratam tudo como simples divertimento. Isto torna a prática muito mais desumana e tira peso da arte, algo substancial quando falamos de violência.
Os inimigos são um bom exemplo. Geralmente tratados como simples alvo, comumente somem após serem abatidos, uma decisão técnica, mas que contribui e simboliza a desatenção do jogador em relação ao dano que causa. Compreender a gravidade das ações dos personagens é muito importante, pois a arte é definida por causar sensações e sem isso, ela torna-se vazia. Independente do valor que cada um dê para os elementos usados pela obra, há sempre algum valor a ser considerado.
A mídia dos game vêm mostrando cada vez mais profundidade e humanidade em suas produções, inclusive sendo comparada algumas vezes com o cinema, já que agora os realizadores decidiram investir em criar experiências mais identificáveis, com personagens tridimenssionais, temas relevantes e um realismo maior no visual e nas mecânicas. Entretanto, a banalização da violência é algo que ocorre em todas as mídias e é pouco discutido, já que perde-se muito tempo com polêmicas baratas. Ao menos hoje em dia já não é mais tão incomum criar conexões com os personagens, se importar com seus destinos e até chorar ou sorrir por eles, como em The Last of Us, Valient Hearts, The Walking Dead, Gone Home, entre outros.
Abordando especificamente a violência como seu tema, temos jogos como Risk of Rain e Hotline Miami. O primeiro é bastante sutil e seus comentários estão em detalhes. O jogo é um roguelike de plataforma feito em pixel art, onde o jogador deve sobreviver a monstros alienígenas em cenários variados. O jogabilidade em si é bastante rasa, mas a história é contada pelas descrições disponíveis no menu, contando detalhes sobre os monstros e os itens. Lendo os relatos e observando os elementos do jogo, notamos que o jogo tenta transmitir um leve sentimento de culpa nas mortes causadas pelo jogador, inclusive mantendo os cadáveres dos inimigos abatidos visíveis, algo que pode ser ignorado facilmente por quem está acostumado a banalização da violência.
Com uma abordagem muito menos sutil, Hotline Miami desenvolve um personagem viciado em violência com uma jogabilidade que vicia o próprio jogador em matar os inimigos. Por ser bastante difícil e baseado em precisão e reptição, o jogador chega ao ponto de sentir raiva nas fases mais complexas e saborear a sangrenta morte dos inimigos. Além de transmitir uma sensação, a raiva, de forma inteligente, o jogo ainda levanta uma discussão sobre o valor da violência na arte. Com seu visual distante da nossa realidade, ele aumenta cada vez mais a violência gráfica, tateando o limite da violência caricata e podendo incomodar e chocar, mesmo deixando claro que tudo aquilo é falso.
Tudo não passa de ficção, mas parece justo concluir que há peso em cada elemento da história que jogamos, lemos ou assistimos, afinal nos emocionamos e nos importamos com aquilo. Resta definir qual é este peso.
Realidade e Ficção
Em 1997, Michael Haneke concebeu Violência Gratuita (Funny Games), um filme que desconstrói a violência na arte demonstrando com realismo as consequências da violência enquanto quebra a quarta parede para mostrar que aquela realidade é falsa. Este filme brinca com conceitos de cinema e é basicamente um estudo da mídia, mas levanta a mesma questão que Hotline Miami: Onde está a realidade de uma morte falsa?
Alguns podem dizer que tudo não passa de manipulação, uma produção feita para emular uma sensação artificialmente. Em uma metáfora simples, o mundo real é um ser humano normal, uma obra fantasiosa é uma estátua de mármore e uma obra realista é uma estátua de cera. Obviamente, a estátua de cera é falsa e não tem vida, mas provavelmente sentiríamos algo ao ver uma sendo decapitada. As sensações reais que sentimos com a ficção é comparável com a ilusão da mão de borracha.
A violência que um personagem sofre não causa dor física real, mas há alguma realidade na ação. A ideia de tratar a ficção como realidade pode ser problemática, algo discutido aqui, mas talvez o caminho contrário possa trazer reflexões importantes. No cotidiano do mundo real, ouvimos falar ou presenciamos de longe inúmeros casos de violência e geralmente nos mantemos indiferentes, como se o noticiário fosse mais uma realidade fictícia, mas choramos a morte de entes queridos e pessoas que possuíamos alguma relação. Da mesma forma, somos indiferentes às centenas de nomes escritos no Death Note, mas sentimos um nó na garganta quando (spoiler) L ou Light morrem.
Ao criar uma história plausível, a arte cria um espelho para a nossa realidade, podendo distorcer o reflexo ou não, mas sempre mostrando algo de um novo ângulo. Gostar de matar em um jogo, se apaixonar por um personagem em um mangá ou torcer por um herói de um filme não só demonstra a eficiência dos criadores em tornar a narrativa crível, mas também ajuda a aperfeiçoar nossa subjetividade e constrói nossa visão de mundo.
É preciso pensar sobre o que se consome e atribuir o devido valor a cada elemento explorado ou ignorado pela obra. A violência fictícia pode não afetar os personagens, já que eles não existem de fato, mas a relação que temos com ela pode dizer muito sobre nós mesmos, nossa empatia e nossas relações interpessoais. Afinal, arte é sempre feita por pessoas, para pessoas e sobre pessoas; no momento que alguém a observa, ela se torna real.
muito bacana o texto
uma coisa que me incomoda é quando gente lê obras como berserk apenas pela violência e não pega todas coisas maravilhosas que a obra tem a oferecer
Realmente, somos impactados por qualquer tipo de conteúdo, por mais longe da realidade que ele seja. Por exemplo, dizer que um videogame incentiva a violência por parte de todos os jogadores é uma falácia, pois cada um consome a obra de um jeito, mas também temos que nos atentar que existem pessoas mais suscetíveis a esse tipo de mensagem e que podem sim se influenciar por ela. Acredito que tanto o lado dos tabloides sensacionalistas e/ou conservadores, que criticam a liberdade excessiva das formas de arte, quanto dos consumidores (nós), que queremos experimentar coisas novas e substanciais em nossas vidas, tem um ponto na discussão.
Excelente texto.