Desde A Lenda de Aang, Avatar já se mostrava uma série animada muito inteligente no desenvolvimento de seus personagens e na construção de seu complexo e envolvente universo. Porém, é notável que na sequência, A Lenda de Korra, estas qualidades evoluíram muito e compuseram uma série ainda mais memorável que a original.
Na terceira temporada, que considero a melhor, temos um episódio brilhante que sintetiza bem o apuro visual e narrativo da série. Enter the Void traz momentos chaves para a história desta e da temporada seguinte, revelando-se isoladamente uma pequena obra-prima. Com muitas imagens e muitos spoilers, analisarei quase que cena por cena as técnicas usadas pelos realizadores no episódio em questão. Não haverá muita contextualização, já que o texto é feito para quem assistiu ao episódio, mas talvez quem não se importa com spoilers e não acredita na qualidade desta animação poderá ser convencido antes do texto acabar.
Começamos o episódio com Korra sobre pressão para tomar uma decisão depois de saber que seu inimigo, Zaheer, capturou os dominadores de ar que ela se esforçou tanto para encontrar e quer trocar a liberdade deles pela dela. Enquanto seus companheiros discutem um plano de resgate, sem considerar aceitar a tal oferta, Korra está distante, alheia à discussão, e sufocada por seus conflitos, algo representado visualmente pela fotografia.
Ela logo percebe que se entregar é algo inevitável para salvar a vida dos dominadores de ar, já que Zaheer não exitaria em matá-los. Korra entende que eles carregam a cultura milenar dos nômades do ar que fora devastada no passado, além de ter uma forte conexão emocional com eles, mas também sabe que sua existência como Avatar é importante e possui sua autopreservação. Contudo, ela aceita o acordo mesmo estando muito insegura e dividida, algo visível em sua expressão e na escolha de retratá-la olhando para seu reflexo, como se tentasse convencer a si mesma.
Tentando parecer forte para aqueles que se importam com ela, Korra reprime seu medo para que seu sacrifício vindouro soe mais heroico do que melancólico, querendo ser mais Avatar do que um ser humana. Esta introversão só comprime mais os sentimentos ruins dentro dela, deixando-a sob mais pressão, e servirá de base para seus conflitos até o fim da série.
Antes dela partir, temos uma cena com Tonraq, o pai de Korra, que reforça alguns pontos que serão importantes no climax do episódio. Vemos Tonraq dizer que está orgulhoso de sua filha em um momento de carinho mútua, evidenciando que as divergências da segunda temporada foram superadas e ele confia nela, seguido de Korra alertando o pai sobre o perigo que Zaheer representa, especialmente para ele que é um líder político e estes são os alvos do vilão.
Enquanto isso, temos o outro lado da história. Zaheer, o vilão, medita sob uma pacífica luz natural, diante de uma estátua e com seu colar, tudo representando o estado de espírito calmo e sereno que almeja e que é definido muito bem pela citação do Guru Laghima, algo que ele recita como um mantra:
“Let go your earthly tether. Enter the void. Empty and become wind.”
Sua luz pacífica representa o vazio que está disposto a buscar, mas algo ainda o corrompe: P’li. Surge em cena esta figura tomada pelo vermelho que, além de ser obviamente uma alusão ao fato dela pertencer ao elemento fogo, representa o amor de Zaheer, o desejo mundano que ele ainda não conseguiu abandonar. O local e a própria cena soam como uma representação da mente de Zaheer, com o desapego e o desejo tentando coexistir.
Esta cena também possui outra utilidade que não a simbólica. Ainda que estes que vemos sejam os caras maus, momentos como este humanizam os vilões e nos ajudam a entendê-los melhor. Ao mesmo tempo que o beijo sob os olhares julgadores das estátuas nos mostra que até eles tem a capacidade de amar, o diálogo deixa claro que ambos realmente acreditam na legitimidade de sua ideologia e suas ações.
Por nos importarmos com os vilões e compreendermos a motivação deles, os embates tornam-se mais complexos. Embora o acordo fosse, até certo ponto, bastante pacífico, os dois lados mentiram e a batalha inevitável veio. Um detalhe interessante é o fato de Korra estar acorrentada, gerando um obstáculo angustiante e serve como elemento de roteiro para diminuir as possibilidades de vitória da garota, além de causar um tipo de movimentação muito único para o combate.
E recuperando a relação pai e filha mostrada no começo do episódio, temos a luta dos dois contra Zaheer. A emoção da batalha é potencializada pela forte ligação entre os familiares, originando assistências e golpes cooperativos bastante singulares e empolgantes.
Do outro lado do pico onde o combate acontece, muito sabiamente nomeado Laghima’s Peak, P’li enfrenta os dominadores de metal que apoiam Korra, mostrando-a enorme diante dos pequenos rivais e revelando que seu vermelho não remete apenas ao desejo amoroso, mas também ao perigo que representa desde o começo da temporada.
E, novamente, temos uma batalha que envolve familiares cooperando. Neste caso, são as irmãs Beifong que lutam juntas, nesta cena que se opõe a outra presente nesta temporada onde as duas se enfrentam ferozmente. Elas superaram suas diferenças e mostram o fim do arco de recuperação da relação fraternal desenvolvido até ali.
As relações afetivas, aliás, são uma constante neste episódio. Como já citei, isto humaniza os personagens, mas aqui serve também para estabelecer para o espectador o peso das relações e do amor, algo que pode ser tratado como uma prisão, um obstáculo ou até uma muleta, mas que é extremamente importante para não tornar as pessoas frias e vazias.
Então, temos a sequência mais brilhante e memorável do episódio e, talvez, de toda a série. Durante a batalha contra Zaheer, Tonraq erra um golpe decisivo e os realizadores decidem usar um slow motion. Além de ser esteticamente interessante ver os cristais de gelo quebrando, sentimos a importância do erro e do que virá a seguir. A previsão de Korra se concretiza e seu pai é jogado do pico por Zaheer, cortando logo depois de vermos a expressão desolada da garota ao perceber que seu pai, provavelmente, morreu.
Somos jogados para a batalha de P’li contra Su e Lin Beifong, onde a moça cai na armadilha das irmãs. A gigante foca sua atenção em Lin e ataca, novamente sendo mostrada com um slow motion, sendo surpreendida pela armadura de Su que cela sua explosão e gera a cena mais violenta da série. Vemos a expressão desolada de Zaheer ao perceber que seu amor, sua única ligação com o mundo, morreu.
Esta sequência é magnífica. Primeiro, pelo choque que causa no espectador que, no auge da tensão do episódio, dificilmente esperaria algo tão forte e impactante. Segundo, o ritmo e a montagem são precisos em construir a rima de forma orgânica, fazendo um perfeito ping-pong de foco que mantém a potência emocional durante todo o tempo que precisa, da perda de Korra para a perda de Zaheer e de volta para Zaheer encontrar finalmente seu destino e terminar a situação no auge da intensidade.
O vilão consegue derrubar Korra e carrega-a até a beira do pico, onde as cordas do seu dirigível foram cortadas previamente por Tonraq. É revelador o modo como ele observa o dirigível, podendo parecer que é o momento onde ele percebe que está sem saída, porém não é difícil notar que seu olhar calmo é quase de um aluno que está aprendendo algo importante com o dirigível. Ele recita mais uma vez os dizeres de Guru Laghima, agora sem seu desejo e convicto da filosofia, e joga-se para tornar-se vento.
Vemos Zaheer isolado no meio do quadro sob nuvens cinzas que representam bem o vazio que ele finalmente encontrou. Logo depois, ele voa e vemos ao fundo o templo do ar a beira da destruição, servindo para mostrar como as coisas mudaram rapidamente – agora Zaheer voa e o templo está prestes a deixar de existir – e prepara a transição relembrando o espectador da situação em que os outros personagens se encontram após esta sobrecarga de tensão em Laghima’s Peak.
Embora empalideça um pouco perto da trama principal do episódio, esta subtrama tem sua importância e é bem executada. Mako, Bolin e Asami chegam no templo para resgatar os dobradores de ar. O dirigível deles será relevante e o foco que é dado para a corda sendo amarrada é uma pequena pista.
Obviamente, os inimigos mentiram sobre o acordo e eles tinham um plano bastante inteligente e prático. Eles enganaram os mocinhos sem dificuldades e a dupla Mako e Bolin precisou enfrentar Ghazan e Ming-Hua mais uma vez, rivalidade divertida que foi construída a cada encontro entre eles durante a temporada.
Desta vez, entretanto, os vilões foram muito mais práticos e tinham objetivos estreitos a serem cumpridos. A luta mal aconteceu, o que fez sentido pela importância e urgência da operação e não tirou tempo de tela da trama principal. Ghazan logo faz tudo que pode para enterrá-los em lava e escombros, terminando o plano ao fugir com o dirigível que os outros chegaram.
E após passar a temporada toda tentando aprender a dobra de metal, Bolin vê que seu último recurso é tentar parar a lava que os encurralou. Ele domina a lava e resolve o problema em uma coincidência que não incomoda tanto pela coerência, já que ele é filho de um pai do Reino da Terra e mãe da Nação do Fogo, e pela empolgação de sabermos que ele ganhou uma habilidade nova.
Por último, há uma cena curta, mas que me agradou por sua composição espacial. Quando Bolin descobre sua dobra de lava, temos ele em primeiro plano – mostrando a situação em si – seguido dos outros três logo atrás, mostrando a sensação subsequente – surpresa e deslumbramento com aquela descoberta tão importante – e, logo depois, temos Kai surgindo ao fundo, um elemento orgânico no roteiro, visto que ele era o único dominador de ar livre, e relembrando que a dobra de lava é apenas um detalhe comparado aos outros problemas. A ordem dos planos corresponde ao fluxo de sensações do espectador.
E voltamos para Zaheer, o astro. Ele é mostrado flutuando enquanto medita e, não por acaso, é banhado pela mesma luz que representava sua serenidade no começo do episódio. Após explicar como encontrou a verdadeira liberdade ao abandonar os desejos mundanos, Ming-Hua pergunta por P’li e, no exato momento exato que relembra e fala de sua amada, ele toca novamente os pés no chão, deixando claro o simbolismo e, talvez, demonstrando que lhe resta alguma humanidade.
O destino de Korra é revelado em outra cena memorável. Ela está diante da Lótus Vermelha, o símbolo de seus algozes, acorrentada como um mártir e envolta em pedras verdes brilhosas. Estas pedras possuem um significado importante, e sutil, pois são verdes em um tom que geralmente é associado a morte. Fora este simbolismo visível em filmes e séries em geral, as rochas especificamente estão presentes na série original de Avatar, quando Aang é quase morto durante o estado Avatar, fazendo mais uma rima visual. E, no futuro, quando Zaheer surge novamente na quarta temporada, as mesmas pedras surgem com ele.
Korra, acreditando que seu pai foi morto por Zaheer e frustrada por sua derrota, tenta liberar toda a pressão que passou durante o episódio, mas ela está completamente impotente ali. Seus inimigos conseguiram tudo que queriam e agora tudo parece perdido.
A última cena do episódio é o rosto de Korra, assustada e indefesa. A preocupação dela não poderia estar mais correta, pois este momento é o começo de um de seus maiores traumas e ressoará em sua mente por muito tempo, servindo como fio condutor de seu arco na quarta temporada. Ela mudará muito a partir daí e precisará refletir sobre o trauma para evoluir e descobrir que, no fim, isto teve seu valor.
“O novo não pode surgir sem a destruição do velho.”
Quem disse isto foi o sábio Guru Laghima – ele não poderia estar mais correto.
“O novo não pode surgir sem a destruição do velho.”
Exato, “Enter the void.” é o que era o “Just do it” antes do Shia.
A série é muito boa sim, por causa de toda essa complexidade, mas ainda assim frustrante por causa do romance e da falta de consequências na temporada final. Não imaginava que vocês gostassem tanto.
“Vocês” na verdade sou eu apenas. Acho que sou o único que gosta tanto da série por aqui.
E concordo na parte do romance, tenho muitos problemas com isso, mas não tira a qualidade do resto.
Concordo que sem dúvida esse episódio é o ponto alto da temporada, se bobear, da série. Acho que cheguei perto de gostar tanto do episódio 06 (acho) da primeira temporada quando o Amon invade a arena da Dobra Profissional e bota pra quebrar na porra toda, mas ainda ali tinha alguns defeitinhos, que são bem mais rasos aqui. Acho que o único que consigo citar é o da dominação de lava pelo Bolin, que sinceramente não achei pouco e sim muito forçado. Gosto bastante do personagem, mas foi Deus Ex Machina demais.
Um ponto só pra constar, embora praticamente todas as mulheres da série sejam personagem no mínimo bons, a P’li é a mais instigante visualmente. Esse visual de cabelo raspado ao lado com o fato dela mesma ser mais alta que seu amante (e já bem alta por si) é bacana não só pela rebeldia como também pela diversidade e forte presença representados. É ótimo.
“Porém, é notável que na sequência, A Lenda de Korra, estas qualidades evoluíram muito e compuseram uma série ainda mais memorável que a original.”
Acho a lenda de aang melhor , todavia excelente analise , esse episodio realmente é o melhor da serie , junto com os dois do avatar wan
Penso que, no final das contas, Korra ainda é melhor. Porque em A Lenda de Aang, todas as temporadas são parte de uma trama maior, que só é concluída no último episódio. Às vezes, parecia que as subtramas não tinham tanta importância ou havia uma forte perda de liberdade para criar consequências que perdurassem por mais tempo, já que tudo deveria girar em torno da nação do fogo e de como os personagens principais iriam derrotá-los (mesmo que a série tenha lidado muito bem com isso, esse “defeito” ainda existia e, quando eu assistia e lembrava disso, incomodava).
Já em A Lenda de Korra, cada temporada funciona individualmente. O conflito é apresentado, desenvolvido e concluído ali mesmo (salvo as ótimas consequências que perduram pelo resto da série, como o mundo espiritual e o trauma gerado por Zaheer, o que é bastante positivo e mostra a evolução que houve de uma série para a outra). Todas as quatro temporadas procuravam entregar algo diferente, fosse isso representado através dos vilões ou na forma como os personagens eram trabalhados.
E é exatamente por isso que a acho melhor que sua antecessora.
Enter The Void, individualmente, é muito bom mesmo.
Mas não foi o ponto alto da série. Na verdade, foi o estopim para aquilo que viria a ser o ponto alto.
No final da terceira temporada, o personagem mostrou o quão significativas podem ser as consequências dos seus atos na vida de alguém.
Logo em seguida, o trauma que nasceu na Korra foi trabalhado de forma muito madura, sensível e humana na quarta temporada. Logo no começo, vemos uma personagem completamente diferente do que estávamos acostumados até então: alguém quebrado, confuso e assustado. Toda aquela sequência de recuperação, desde a reabilitação com a Katara até o “treinamento” com a Toph, carrega um forte (e lindo) simbolismo: “Não importa quantas pessoas te machuquem, não importa quantas pessoas tentem te ajudar, só você tem o poder de mudar ou permanecer como esta; a jornada é individual, por mais difícil e dolorosa que seja”.
Essa filosofia se aplica um pouco nas ideologias do Zaheer e esta presente em vários momentos de A Lenda de Aang; por isso a tomo como a grande “mensagem” da série.
Um dos temas de A Lenda de Korra é sem duvida tratar as consequências das ações dos personagens, pois a cidade republica só existe por ações tomadas por Aang, Zuko e o rei da terra que resolveram transformar as antigas colônias da nação do fogo em um local independente, e se retrocedermos até a serie original, a guerra dos 100 anos só ocorreu porque o avatar Roko não deteve o senhor do fogo Sozin e por ai vai. Uma coisa tem de ser ressaltada, se a Lenda de Aang não tivesse feito sucesso jamais teríamos a sua sequencia.
Ainda me incomoda o fato de Korra não ter entrado no estado de avatar quando a sequencia de ação começou, mas isso não afeta o resultado final do episodio, que é um dos melhores da serie.
Com temas adultos, Korra é um grande sopro de criatividade da TV americana que estava anos a frente de seu tempo infelizmente, mas definitivamente vale a pena ser vista pelo máximo de pessoas possíveis.
Sempre preferir a primeira versão mais essa me surpreendeu bastante, consegue ser tão boa quanto a outra apesar de ser mais seria a meu ponto de vista
Pra mim ser séria era o objetivo pra não repetir a primeira história, o Aang era uma criança que queria se divertir, já a Korra passou dessa fase e tem que encarar coisas como responsabilidade, lidar com a falta de paciência, saúde mental, estresse pós traumático, ansiedade e sexualidade.