Volume 1 (de 3+), por Oku Hiroya.
Alguns meses após o término de Gantz, o autor impressionou muitas pessoas ao trazer um mangá que aparentava ser a história sobre um velhinho comum. O choque era esperado, já que Hiroya vinha de uma longa série sustentada por violência gráfica, ficção científica e erotismo, sempre com uma boa dose de exagero e ascosidade. Mesmo surpreendendo de início, aos poucos percebemos que o autor não mudou tanto assim.
Acompanhamos Ichiro Inuyashiki, com sua esposa, seu filho e sua filha, chegando em uma nova casa. O homem, que aparenta ser bem mais velho do que realmente é, demonstra uma forte apatia perante sua família, não impondo nenhum respeito ou admiração. Além disso, tudo que vemos de sua vida é deprimente, seja uma viagem de trem, uma conversa com seu filho ou uma ida ao médico.
Porém, em um passeio noturno com seu cachorro, Inuyashiki é atingido por uma misteriosa explosão, mas acorda pouco tempo depois como se nada tivesse acontecido. A partir daí, a herança de Gantz se revela. O velho inofensivo foi destruído por aliens e seu corpo foi trocado por um novo, idêntico por fora e completamente robótico por dentro. Com isso, ele precisa entender o que se tornou e como isso mudará sua vida.
A identidade visual sempre foi algo chamativo em Gantz. A evolução do autor neste quesito era muito clara, conseguindo aperfeiçoar cada vez mais sua combinação entre modelagens 3D e o traço 2D básico e concebendo cenas mais dinâmicas e naturais. Em Inuyashiki, o visual abraça o realismo que a técnica permite, passa as ideias visuais com bastante clareza e mostra-se muito firme e coeso. Ainda assim, carrega um problema conceitual.
Longe da caricatura e distorção da maioria dos mangás, mas não tão perto do realismo de uma fotografia, a arte passeia pelo vale da estranheza com alguma frequência. Junto com algumas interseções desagradáveis entre o 3D e o 2D, os personagens parecem mais artificiais que robôs, com olhares vazios, como se estivéssemos vendo manequins encenando as ações. Mesmo algumas ações mais intensas, com gritos e lágrimas, trazem esta artificialidade e aparentam ser mais estáticas do que deveriam, até para uma mídia “parada” como os quadrinhos.
Alguns dos personagens deste primeiro volume também não contribuem para que os enxerguemos como pessoas. A esposa e a filha do protagonista são completamente vazias, presentes apenas para representar a opressão do pai diante da família, algo desagradável mesmo tendo relevância para o roteiro. O morador de rua que surge mais próximo do fim do volume incomoda um pouco também, mas por sua intensidade. Sua história é excessivamente dramática e suas reações são exacerbadas, fazendo dele outra caricatura artificial em serviço do desenvolvimento de Inuyashiki.
Felizmente, o filho mostra mais humanidade que os outros em sua curta participação, tendo diálogos mais identificáveis e compreensíveis. Enquanto sua irmã e sua mãe possuem falas superficiais e até cruéis, o garoto compara sua família a Hobbits, reclusos e pouco heroicos, o que reflete algo importante na personalidade e nas decisões futuras de seu pai.
Por último, o próprio Inuyashiki mostra-se um ser bastante desagradável de se conviver, criando uma conexão inicial com o leitor simplesmente porque ficamos com pena dele. Em uma situação que lembra Breaking Bad e a nulidade de Walter White, o velho passa todo o primeiro volume confuso, chorando e/ou suando. Porém, há um forte indício que ao longo da série ele mostrará cada vez mais determinação, tomando as rédeas de sua vida e de suas escolhas.
Algo que tira um pouco da força do personagem é o ritmo do volume, tanto internamente em cenas específicas quanto no desenvolvimento geral do enredo. Há uma cena onde ele enfrenta alguns delinquentes para proteger uma vítima, algo que, poucas páginas depois, geraria sua determinação de ajudar os outros com este novo corpo. O clímax do enfrentamento se dá com ele desacordado no chão, soando mais como um movimento automático do que uma resolução deliberada. Isto dificulta o entendimento do personagem, já que se desenvolve mais as causas da decisão do que a reflexão para chegar nela.
A compreensão da mente do personagem título é um defeito recorrente, com momentos mal contextualizados e ações confusas. Parecendo outro manequim fingindo ser humano, as decisões do protagonista não são compartilhadas com o leitor, dando a impressão que são impensadas ou que o pensamento do velho Inuyashiki é rápido demais para acompanharmos. Consequentemente, sentimos dificuldade em assimilar cenas específicas, como a dele comendo caviar de colher; enfiando o dedo no nariz para procurar um botão; ou até decidindo que a melhor forma de descobrir o defeito de seu celular é com uma martelada no objeto.
Todavia a artificialidade das decisões, da arte e dos personagens não está apenas nos defeitos do mangá. Ainda é cedo para afirmar de maneira categórica o tema da história, mas desde já é possível notar alguns pontos que poderiam ser desenvolvidos pelo autor. O protagonista é tratado desde o começo como se fosse uma ferramenta, uma existência programada para prover sua família e atender as expectativas de sua função no mundo. Ignorando as crueldades de nossa sociedade, sempre fechado em seu casulo, tudo que lhe resta é aguardar a morte enquanto convive com suas decepções e fragilidades.
É importante perceber que a libertação de sua rotina maquinal se dá quando ele se torna uma máquina de fato e descobre sua humanidade e sua individualidade, há muito perdidas. Além de representar a crise da meia idade, revela a pressão sobre o ser que segue as regras básicas da sociedade a risca e a desumanização do indivíduo perante suas funções.
Quando Inuyashiki parece inclinado a contar para sua esposa sobre seu grave problema de saúde, ela o repreende antes falando sobre um problema muito menos importante. Isto define a superficialidade das prioridades da esposa, e de boa parte da sociedade, seguindo a vida focando no micro, enquanto as questões realmente importantes escorrem pelos dedos e são omitidas ou ignoradas. Assim as pessoas ficam cada vez mais vazias, como manequins insensíveis imitando uma vida humana.
Desenvolver e evoluir estes temas até o fim da obra é um desafio, principalmente precisando intercalar o foco na vida do protagonista com a ficção científica e a iminente aparição dos aliens. Além disso, o tema não se sustentará sozinho, precisará de uma narrativa mais sóbria e situações mais orgânicas para criar maior envolvimento e imersão do leitor. Ainda que seja uma forma de vida artificial e mecânica, o protagonista conseguiu encontrar sua humanidade, agora resta apenas o leitor poder sentí-la também.
Avaliação final
Por enquanto estou adorando esta obra. Um protagonista muito original e como ele vai lidando com as mudanças doidas que lhe ocorrem. Na verdade a cada capitulo que leio me dou conta da forma preconceituosa como lidamos com os velhos (é uma obra que me deixa mau, mas me faz pensar melhor)
Estou acompanhando e adorando essa obra. Acabo discordando sobre praticamente todos os pontos negativos que você falou. A arte não me incomoda e não parece superficial, mais pra frente há cenas com boas expressões inclusive.
Pareceu que você está reclamando do modo como a esposa e filha dele agem, como se isso fosse artificial. Mas é bem pelo contrário, esse tipo de atitude é muito comum, talvez mais ainda na sociedade japonesa. Uma das coisas que me fazem gostar desse autor é justamente como ele retrata a sociedade moderna, sem toda aquela fantasia que os mangás costumam ter, isso deixa uma marca histórica na obra (retratar o tempo em que foi escrita). Por outro lado, o autor acaba focando até demais no lado ruim da sociedade e praticamente nada no lado bom (e tem lado bom? Claro que tem! Não seja tão pessimista!). Mas acho 100% melhor do que o contrário: mostrar só o que tem de bom (geralmente fantasiando um lado bom) e fingir que toda a podridão não existe.
“A compreensão da mente do personagem título é um defeito recorrente, com momentos mal contextualizados e ações confusas. Parecendo outro manequim fingindo ser humano, as decisões do protagonista não são compartilhadas com o leitor, dando a impressão que são impensadas ou que o pensamento do velho Inuyashiki é rápido demais para acompanharmos. Consequentemente, sentimos dificuldade em assimilar cenas específicas, como a dele comendo caviar de colher; enfiando o dedo no nariz para procurar um botão; ou até decidindo que a melhor forma de descobrir o defeito de seu celular é com uma martelada no objeto.”, discordo do parágrafo inteiro. Talvez você pense assim por estar acostumado com os mangás comuns, onde todas as cenas são dialogadas como se as pessoas narrassem todas as ações que tomam: “esse caviar é tão bom! E olha que estou comendo com colher”, “será que se eu colocar o dedo assim no nariz eu acho um botão?”, “acho que se eu der uma martelada no celular o efeito concerta”. Eu acho essas narrações ridículas e amadoras. Infelizmente os próprios autores costumam ser amadores demais pra retratar todas as cenas sem ter que recorrer à descrição, precisam descrever em palavras ações que deveriam ser descritas com imagens.
Até o capítulo 45 acontecem algumas cenas de ação muito marcantes e impactantes, você precisa ter calma e acompanhar.
Um ponto que eu vejo como negativo é que a família dele é pouquíssimo explorada mais pra frente e o próprio sr. Inuyashiki começa a perder espaço para o Hiro, sendo pouco desenvolvido. De qualquer forma, ainda está no começo, tem muita água pra rolar e a trama ainda se desenvolverá muito.
Como realmente não gostei tanto deste primeiro volume, acabei parando logo depois a leitura do mangá.
Sobre o trecho que citou, eu disse que o problema é o autor não desenvolver a motivação do personagem pra tomar as atitudes. Eu sei como, quem e o quê, mas não há apresentação do porque. Não acho que seja relacionado a diálogos expositivos, pois mesmo que houvessem as tais falas, o problema se manteria. Colocar a mão no nariz para achar um botão, comer caviar de colher ou dar uma martelada no celular não são ações razoáveis e nem comuns, precisariam de uma motivação forte para serem feitas. Sem mostrar qualquer tipo de linha de pensamento que levasse o protagonista a agir assim, as ações ficam repentinas e parecem ferramentas do roteiro para ajudar a revelar os mistérios.
[…] Inuyashiki (Hiroya Oku) […]