Rodapé: Os Desejos de Oyasumi PunPun

Inio Asano tem muitas obras boas em sua mangagrafia, mas nenhuma é tão analisada e comentada quanto Oyasumi PunPun. Alguns dizem se tratar de sua obra máxima, mas sendo de fato ou não, a verdade é que a clara profundidade e os simbolismos do mangá propiciam diversos estudos de seus temas e significados.

Com muitos spoilers, abordarei aqui a história de Punpun e os conceitos de desejo e sorte, tanto na cultura japonesa quanto na vida dos personagens do mangá.

Desejos

Na teoria, desejo é uma força que impulsiona o indivíduo na direção de algo que o satisfará, mas que é prescindível à sua sobrevivência. Desejar é uma característica absolutamente humana e que evidencia a nossa falta de perfeição, já que seres superiores, como deuses, não possuiriam obstáculos para o que almejam e não precisariam passar por esta etapa. E isto remete totalmente ao mangá de Asano e aos conflitos de seu protagonista.

Punpun é exposto a ideia de desejos desde cedo. Ele era um garoto fascinado com ideias fantásticas e sonhos grandiosos, como tornar-se um astronauta para poder colonizar estrelas, ou a simples ideia de ir de bicicleta até outra cidade. Para uma criança, estas ideias são comuns, mas há uma forte carga cultural e social que contribuíram com os problemas que ele teria com seus desejos no futuro.

Logo na infância, antes de conhecer seu Deus, Punpun já estava familiarizado com a tradição dos pedidos para estrelas cadentes, algo enraizado em inúmeras culturas. Entretanto a cultura japonesa parece dar uma atenção e um valor mais forte para este tipo de crendice. O próprio Tanabata mostrado no mangá é um bom exemplo de tradição relacionada ao desejo.

O Festival do Tanabata tem origem na lenda de uma princesa que encontrou o seu amor verdadeiro, mas o pai da moça desaprovou seu apego exagerado ao amante, pois isto a deixava desleixada com todos os outros aspectos de sua vida. Eles foram separados, um em cada canto da Via Láctea, e poderiam se ver apenas uma vez por ano, com a condição que a princesa realizasse os desejos das pessoas da terra neste dia. A lenda se assemelha um pouco a relação de Punpun e Aiko e a comemoração traz novamente o desejar como tema.

Outro elemento do mangá que remete a isso é o Daruma. Uma das figuras mais recorrentes da obra, este amuleto é vermelho e tem um formato arredondado, com um rosto e sem braços ou pernas. Sua imagem é baseada em Bodhidharma, um monge que cortou suas pálpebras para não poder dormir durante sua meditação que durou 9 anos, perdendo os movimentos dos braços e das pernas pela falta de uso. O Daruma geralmente é feito de madeira, tem os olhos brancos e o dono deve pintar um de seus olhos ao fazer um pedido, pintando o segundo olho apenas quando este for realizado.

A presença do Daruma em Oyasumi Punpun é bastante relevante do ponto de vista simbólico por este significado cultural. O protagonista recebe um destes de presente de sua tia logo após ser estuprado por ela, mostrando uma forte ironia entre a situação ocorrida contra a vontade de Punpun e o brinquedo que representa o desejo. Este conflito se faz presente em vários momentos e está no cerne do mangá, o desejo contra a realidade e o querer contra o fazer.

Até mesmo o infame personagem Pegasus dá sua colaboração ao tema com suas crenças. Seu lema “Boas vibrações”, repetido à exaustão, retrata o ponto onde o simples querer poderia afetar a realidade. As “vibrações” significam o pensamento positivo e as ações de Pegasus são sustentadas na ideia de que uma mudança pequena pode fazer uma grande diferença. Ainda que seja um conceito correto, o modo como é usado se mostra um atalho no conflito de Punpun. Para concretizar seu desejo de salvar o mundo de uma catástrofe, ele acredita que suas pequenas ações ressoarão pelo universo em um efeito borboleta espetaculoso, mas sem focar diretamente na raiz do problema.

Pegasus e Punpun têm um olho marcado como o Daruma.

Todas estas superstições revelam o forte obscurantismo presente na nossa sociedade. O Japão, mais especificamente, possui muito de sua cultura envolvida nestas simpatias, mesmo hoje em dia com o grande acesso ao conhecimento. Por exemplo, ainda são bastante populares os Maneki Neko, os gatos de porcelana com a pata pra cima que chamam dinheiro ou sorte, inclusive sendo presença constante nos cenários do mangá. Outros inúmeros rituais e superstições semelhantes são notáveis e ainda presentes na cultura; poços que realizam desejos, estátuas e águas que dão sorte, até mesmo comer sushi virado para um ponto cardeal específico em uma data específica pode trazer saúde e felicidade.

Este tipo de cultura pode parecer frívola, mas fixa certas ideias na mente das pessoas e, no caso específico da mente de Punpun, crescem de maneira destrutiva. Talvez o Punpun seja uma representação de Asano para um aspecto do japonês que precisa se enquadrar nos padrões da sociedade, que são rígidos, ao mesmo tempo que é incentivado pela mesma sociedade a sonhar e desejar mais.

Punpun aprende com seu tio a oração que invoca Deus, entidade que é totalmente relacionada com desejos e pedidos. Por ser perfeito, Deus não precisa desejar, ele possui o poder de fazer o que quiser e tenta direcionar Punpun neste caminho. Representando o modo leviano que muitas pessoas tratam divindades, como um grande poço dos desejos, esta figura com um grande sorriso no rosto ainda reside na mente de Punpun como um traço importantíssimo da sua psique e traz alguns dos conflitos morais mais relevantes da obra.

Punpun, Aiko e Sachi

Punpun Onodera foi apresentado como esta criança ingênua e cheia de sonhos impossíveis, mas mudou sua personalidade conforme amadurecia. Com seus crescentes problemas de socialização, ele transformou-se em um rapaz apático, sem muita iniciativa, mas muitos desejos reprimidos enterrados o mais fundo possível em sua mente. O tio do Punpun surge como um mentor que tenta ajudá-lo a extrair suas vontades e transformar em algo.

A famosa frase “Você colhe o que planta”, dita pelo Tio, pode significar apenas que cada um tem o que merece, mas, especificamente para o personagem Punpun, ela tem um valor a mais por lembrá-lo de que é preciso plantar para colher e não apenas desejar. Vemos durante quase toda a história que atitude não é comum e nem fácil para Punpun, por isso ele usa o Deus como catalisador de suas ações reprimidas e sua vontade de colher, mesmo sem ter plantado.

O Deus do Punpun é o grande vilão do mangá, como fica claro nos últimos capítulos. Por ser onipotente, ele é o lado sociopata de Punpun, o lado que o motiva a agir na direção de qualquer vontade, ignorando éticas, moral e leis da sociedade. Usando os termos de Freud, ele seria o Id, a parte da nossa personalidade que carrega esses desejos inconsequentes.

Em sua primeira relação sexual com Aiko, o protagonista é mostrado em meio a uma floresta, simbolizando sua entrega ao lado mais primitivo de sua personalidade. Ele finalmente realiza seus desejos por mérito próprio e passa a se sentir superior por isto. Em pouco tempo, porém, esta sensação é extrapolada.

Punpun se entrega ao seu lado mais agressivo, que também é o mais sincero, tornando-se amigo de Deus e, por vezes, até se confundindo com ele. Com esta nova faceta dele no controle, suas ações passam a ser completamente imprevisíveis, focadas apenas no que está a imediatamente a sua frente. Esta conduta tem a mesma base da conduta de Deus, pois Punpun sente-se completamente livre, podendo fazer o que quer.

Em um momento muito significativo, Punpun demonstra um forte desprezo pelos desejos amassando o pedido de Tanabata de Aiko e dizendo querer que as estrelas cadentes desapareçam. Em seu entendimento, ele tomou as rédeas da própria vida, independente de sorte ou destino, tornando seus desejos irrelevantes e suas vontades imediatas seu combustível, uma vez que acredita ter alcançado uma liberdade total e irrestrita.

Punpun percebe depois que tal liberdade é sem sentido e infértil. Poder fazer o que se quer sem limites ou objetivos torna qualquer evolução inútil, qualquer relação dispensável e qualquer ação inquestionável do ponto de vista de quem a efetua. No auge de sua sociopatia, o rapaz perde suas ligações com seu lado racional. Mesmo que surja nas páginas com seu corpo mais humano, com braços e pernas de gente, sua mente é mais selvagem que nunca.

Um exemplo disto é a série de relações sexuais que ele mantém com a Aiko. Diferente da primeira vez, não há desejo no ato, eles o fazem de maneira instintiva e simplesmente porque podem ou precisam, exatamente como animais. Os dois se envolvem em uma mistura de amor, medo e desprezo, simplesmente porque não possuem mais barreiras sociais que organizam os sentimentos em seções e padroniza os preceitos de um casal saudável.

A mente de Aiko é tão complexa quanto a de Punpun e sua vida tem algumas semelhanças com a dele, já que possuía muitos desejos e foi impedida de realizá-los. Porém, em vez de abandonar seus desejos após se libertar, como seu amante faz, ela é consumida por eles. Punpun, como um Deus para Aiko, é quem realiza os seus desejos íntimos, desde libertá-la da mãe até levá-la para Kagoshima, algo que ela desejou desde criança. Aiko finge se satisfazer com tais desejos, quando, na verdade, está apenas se enganando em uma ideia deturpada de felicidade e satisfação, algo que não dura para sempre e destrói a moça aos poucos.

Tanto Punpun quanto Aiko estão muito desequilibrados em relação aos seus próprios desejos, assim como o Tio de Punpun que não consegue controlar seus instintos muitas vezes. Porém, se há alguém que seria um exemplo moral neste sentido, é Sachi. De maneira sóbria, ela entende a natureza dos desejos e a responsabilidade que tem sobre eles.

Em dado momento da história, Punpun confronta-a, de maneira muito egoísta, dizendo que a vida dela é muito mais fácil por sua beleza, inteligência e, principalmente, sorte. Em uma resposta reveladora, ela conta que fez plásticas e mudou a própria vida para poder se tornar a pessoa que ela queria. Longe de se trancar nas barreiras da sociedade que Punpun tanto teme, ela continuou sonhando e buscando realizar seus desejos com a própria confiança e força de vontade.

Assim, a garota não é consumida por seus desejos. Com racionalidade, ela consegue aceitar seus erros e usá-los como motivação para evoluir, como quando questiona sua própria conduta em relação ao Punpun, notando que está tratando-o de maneira egoísta. Motivada pela frustração de sua falha de caráter, ela tenta ser alguém melhor, muda e evolui para ajudar seu amigo como puder, sendo sua salvadora no fim da obra.

Fica claro que Inio Asano colocou muito de si em Sachi, inclusive fazendo comentários e brincadeiras metalinguísticas algumas vezes por meio dela. Exatamente por isso, ela é a balança moral da obra, como se enxergasse a história de um ponto de vista mais amplo. Tematicamente, a moça se mostra a grande heroína do mangá. Sem precisar de estrelas cadentes ou amuletos, ela realiza seus desejos e colhe o que planta.

6 comentários

  1. simplesmente foda pra caralho sabe oq e pega a minha obra preferida e muda e explicar e erriquecer ela foi esse texto nem imaginava que o punpun e pegassus era um durama na verdade nem sabia nada sobre isso e algo que simplesmente mudo pra mim a forma de ver a obra muito obrigado hum e sobre pegasso seria bom um rodape ou ate mangaaoquadrado dele pois eu nunca entendo que poha ele e nem pra que serve no fim

  2. Texto bem legal mesmo, não tinha pegado umas coisas citadas e é bem bacana ver o quanto conteúdo Punpun tem (da pra fazer muitos outros textos), o Asano realmente fez um belo trabalho.

  3. Que leitura fantástica da obra, Leonardo. Você conseguiu fazer conexões e dar significados para a obra que simplesmente passaram batidos para mim. Agora fico na obrigação de relê-la por completo para destrinchar todas essas camadas .
    Parabéns pelo artigo!

  4. Bom tarde

    Acabei de conhecer o podcast e adorei, pois com o trabalho e a faculdade não leio mais mangá com a mesma frequência, assim fui ver que vocês comentaram do meu mangá favorito Oyasumi Punpun e gostaria de falar sobre o Pegasus, antes de tudo gostaria de falar que acho ele um dos melhores personagens de Punpun, agora vamos ao que acho do Pegasus.

    Como estudante de psicologia me deparei com vários estudos de caso (vários msm kk), assim vejo o Pegasus como alguém como o Jim Jones ( https://www.youtube.com/watch?v=PP5dLdJmbP4 ), alguem que apareceu para ajudar, aceitar, acolher a todos os estranhos da sociedade, ele é o personagem mais positivo de todo o mangá, aceitando os mais loucos, os que todos falam mal e ignoram, que tratam como coitados, o Pegasus dá voz a eles ( como na cena quando ele estava triste e todos tentam anima-lo ), assim para mim o Pegasus é um contra ponto a depressão, ao pessimismo de todo o mangá, ao mundo da rotina, por isso ele é tão distópico, ele acredita no melhor, em boas vibrações e que a musica do universo diz que o planeta é um bom lugar para se viver.

    Dito tudo isso quero afirmar que o Pegasus é o personagem que apesar de todo acolhimento, de toda aceitação, de ser o único personagem feliz em viver fora da sociedade, ele é o personagem mais extremo do mangá , o que levou ele a ser até queimado vivo, não considero o Pegasus a gordura do mangá, acho que ele é um contra ponto, o outro extremo do mangá, temos de um lado Punpun como depressivo, sem ação, passivo e temos do outro o Pegasus, o lutador que salva o mundo (literalmente segundo Asano kkk), que se une com todos, ativo.

    Após tudo isso gostaria de agradecer a atenção e pedir desculpe pelo tamanho do texto.

    BOAS VIBRAÇÕES

  5. Depois de ler pela 3° vez o mangá ( lendo pela 4° atualmente), e estudar sobre os costumes do povo nipônico cheguei a essa conclusão também, e ver um ponto de vista semelhante é um tanto satisfatório. Assim como o João Miguel, também curso psicologia, e o conhecimento que tenho obtido me ajudou a pegar alguns detalhes e fazer ligações com o que tenho aprendido em relação a ultima vez que li, principalmente a relação do Deus e do Id, muito interessante.
    Agora lanço um uma outra interpretação: Se formos avaliar a obra como um todo, com relação ao Asano, pode-se dizer que o Pegasus representa o Cosmos, ou o próprio Asano, Punpun (Deus) o Id, Aiko o Ego, e Saichi o Superego. Tirando o Pegasus e deixando só o triângulo Punpu, Aiko e Saichi, podemos dizer que eles são a representação de nós mesmos como um todo na realidade ( mangá)
    Espero não ter viajado muito kkk

    • Acho uma interpretação interessante, mas discordo por acreditar que os personagens são mais profundos que isso. Sachi não é definida apenas pela sua racionalidade, ela também possui desejos primitivos e não é do tipo “certinha”, assim como Punpun e Aiko passeiam entre a loucura dos desejos e a reflexão racional, tanto que na maior parte do mangá eles freiam suas vontades pelas barreiras da sociedade, algo oposto ao Id. Acredito que cada um representa as próprias mentes, e Deus é o Id do Punpun especificamente.

      E sobre o Pegasus, eu consigo vê-lo dentro do tema, mas com uma relevância superficial e deslocada. Se tirássemos a existência dele e de sua trama do mangá, a essência do que eu descrevi neste post seria mantida perfeitamente. Talvez ele possa representar o Cosmos, um simbolismo que seria bastante óbvio, mas esta representação não afeta a história e nem o tema, serve como um enfeite temático ao invés de um elemento vital para a obra. A existência dele não é um problema em si, e nem acho que o personagem seja uma má ideia, poderia ser um contra ponto ao Punpun ou qualquer outra coisa que os leitores possam ter esperado ou interpretado, mas nenhum destes possíveis bons desenvolvimentos existe no mangá.

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