Rodapé: Jisatsu Circle e as Fés

Se há um autor que merece atenção para suas obras, esse autor é Usamaru Furuya. Suas histórias maduras, frias e impactantes geralmente trazem reflexões e mensagens poderosas. Autor do ótimo The Music of Marie, ele sabe desenvolver temas pesados com naturalidade. E é exatamente o que acontece em Jisatsu Circle (ou Suicide Club).

Explanarei sobre o mangá focando menos nos aspectos técnicos e mais nos simbolismos, metáforas e analogias relacionadas ao tema presente na obra, como é comum na categoria Rodapé. Aqui os temas são juventude, tristeza e, principalmente, os tipos de fé.

Adaptação livre do filme homônimo, o mangá compartilha a mesma cena de abertura com a obra original. Um grande grupo de meninas colegiais que, aos risinhos, se juntam em uma estação de trem e pulam nos trilhos. Apenas uma menina sobrevive, Saya, e é a história dela que conheceremos dali pra frente, junto com sua amiga Kyoko e o tal clube do suicídio, um grupo de garotas tristes com suas vidas que encontram um conforto no autoflagelo.

A Fé em Si

Desde a primeira cena do mangá temos amostras claras da situação conflitante em que as meninas se encontram. Colegiais aparentemente doces se jogam para uma morte terrível, transformando meiguice em brutalidade de uma página para outra sem rodeios. Uma cena tão chocante que não poderia estar ali apenas para chamar atenção.

Aos poucos conhecemos mais a psique das garotas que entram no clube do suicídio e percebemos que sua doçura é apenas superficial. São adolescentes egoístas, arrogantes, maliciosas e fanáticas, alguns dos piores aspectos da humanidade. Mesmo assim, o que se espera de uma colegial bonitinha é a felicidade da juventude e a delicadeza feminina. E exatamente isso que gera uma forte pressão nas meninas, um temor de ser triste.

Mesmo sendo algo extremamente subjetivo, existe um julgamento do valor dos sentimentos e um senso comum de que todos devem buscar ser alegres o tempo todo. Elas entendem o mundo e a felicidade, apenas não se sentem parte disso por se entenderem como criaturas essencialmente melancólicas. E exatamente por acreditarem que precisam escapar da tristeza, elas pulam de cabeça na direção da fuga mais simples e definitiva.

Não demora até que percam a fé nelas mesmas, tornando-se vazias, aborrecidas e obscuras. Aos olhos delas, a vida se torna uma grande sequência de crueldade com as pobres garotinhas que só queriam ser felizes. E esse vazio é preenchido pela fé em Mitsuko, a grande entidade da líder do grupo que pode suprimir a necessidade de atenção e paixão das meninas, mas livre de julgamentos, críticas ou razão. As invés de encher a mente delas com o juízo dos cruéis, Mitsuko infla seus corações de felicidade pueril, como balões, até que estourem.

A Fé nos outros

Por serem muito intensas, as garotas não enxergam uma solução possível para seus problemas e, mesmo assim, os outros tentam diminuir e relativizar tais questões na esperança de ajudá-las a superar. Isso é interpretado por elas como incompreensão do tamanho de suas dores e gera um fechamento para o mundo. Assim, elas mantém presos seus sentimentos, suas dores e frustrações.

Ainda que demonstrem fisicamente seus sofrimentos por meio de seus cortes, os outros podem apenas vislumbrar, mas nunca se aprofundar na dor ou na razão desta. Deixam de discutir suas angústias por pura vaidade, para não mudarem seus preceitos a despeito do julgamento e dos argumentos alheios. Elas fogem dos olhos julgadores para entrar na escuridão pacífica e vazia.

É imprescindível discutir sobre seus próprios problemas para entender a real gravidade deles, mas a falta de confiança nos outros deixa-as cada vez mais isoladas e convictas que a única saída é caminhar de bom grado pela estrada da dor na direção da morte. Saya, por exemplo, viu seu pai ficar doente e, sozinha, acabou por vender seu corpo para sobreviver. Enquanto isso, sua amiga Kyoko estava se importando apenas com seus próprios desejos e ao retornar cheia de julgamentos míopes para a vida de Saya, vê que esta já encontrou seu próprio caminho e não aceita os julgamentos de mais ninguém. Quando percebe que a amiga precisava apenas de uma conexão, já era tarde demais.

Desiludidas com suas vidas, sem confiança em seus iguais e com visões absolutamente dogmáticas, as garotas procuram apoio em uma divindade e abraçam a fé em seu ídolo, a única que lhes restara.

A Fé Divina

Furuya já tratava de religião em The Music of Marie, demonstrando seu forte ateísmo. Porém, em vez de focar na divindade e em suas consequências, aqui ele nos mostra o que leva a necessidade de uma fé. Ao usar garotas colegiais comuns e não deuses poderosos e magníficos, o autor cria um ponto de vista diferente para a religião.

As ações feitas em favor de Mitsuko, a deusa adolescente, são extremamente questionáveis. Desde tentar mensurar em dinheiro o amor que sentem por seu objeto de culto até machucar a si mesmas e outras pessoas simplesmente porque a líder mandou ou por intrigas fúteis; tudo parece exagerado demais para se fazer em nome de um clube escolar. Mas não é necessário muito esforço para perceber que tais condutas são análogas ao nosso mundo e aos religiosos que cultuam figuras “mais legítimas”.

Mesmo sendo problemáticos, tais exageros são compreensíveis. Por falta de fé em si mesmas, as meninas precisam acreditar em algo ou alguém que passe uma falsa confiança. Ao usar a religião como muleta, a imaturidade delas é compatível com a imaturidade da própria humanidade. Afinal, o deus das pessoas nunca age diretamente, apenas como um apoio invisível para quem não consegue se apoiar em si mesmo e em seus iguais. E a vida dessas meninas, e dos religiosos, não é sempre fácil, portanto dizer que elas são fracas e, por isso, estúpidas pode ser insensível, ainda que correto.

Com forte necessidade de apoio e compreensão, as meninas suicidas denotam a pressão de viver aos olhos do mundo e as maneiras exageradas para fugir das mazelas da vida. São adolescentes indo longe demais por sua imaturidade e obscurantismo, algo que representa uma faceta dolorosa da nossa sociedade, afinal é tristemente comum vermos atos terríveis motivados por estes mesmos defeitos.

É sempre perigoso agir de maneira irracional pela fé em um ídolo. Seja uma menininha de saia, um judeu cabeludo ou um cara de turbante, não há diferença.

4 comentários

  1. Apesar de ser um cara religioso – quem perguntou? kkkkkk – eu gosto muito de ver críticas as religiões ou divindades e gostei bastante da forma de como esse autor a fez. Uma forma que também achei muito interessante foi na obra de José Saramago ” Memorial do Convento’, onde ele expõe os motivos divinos que teriam realizados tais acontecimentos e depois desconstrói ele com os motivos de fato; não a toa que uma das melhores partes é no começo quando ele coloca ” Deus é grande. E tão grande quanto Deus é o Convento de Mafra que o rei mandou construir”. Ótimo post!

  2. Nossa gostei da história irei ler, e com certeza pra mim vai ser uma experiência muito diferente.

  3. Acho válida a discussão sobre a religião nesta interessante obra. O que mais me chamou a atenção foi a “idolatria” das meninas em relação a Mitsuko. Isto claramente nos remete a religião, mas o que observei de fato é que todas elas sentiam um grande vazio em suas vidas, algumas não tinham amigos, outas sofriam bullying, outras não tinham pais, ou então, estes não lhes davam a devida atenção e cuidado. Todas elas viam em Mitsuko uma figura de amor, proteção e carinho. Ainda que todas praticavam autoflagelação, faziam isso por “amor” a um “ser” que lhes dava atenção e as amava também. E tudo isto por potencializado por uma carência afetiva derivada de relações frustradas com a família, e os amigos.

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