1Volume: as coisas que Cecília fez

Volume único, por Liber Paz.


Gostar de qualquer forma de arte sempre resulta em um eterno esforço para estarmos por dentro de tudo, acompanhar todas as possíveis variantes daquela mídia e encontrar histórias melhores. No caso dos quadrinhos, por causa de sua (de certa forma) facilidade de produção acaba-se surgindo um gigantesco universo de histórias, produzidas por uma enorme diversidade de pessoas, desde aquelas que viveram e experimentaram coisas completamente diferentes de você, até aquelas que viveram em um mundo muito parecido. A magia está em você conhecer todas essas perspectivas, se permitindo ir além da própria zona de conforto e explorar tudo o que a arte tem a oferecer.

Em vários podcasts Mangá² que gravamos, já falamos algumas vezes sobre como o mangá é apenas uma forma de se fazer quadrinhos (especificamente a forma japonesa) e que histórias boas surgem independente do país de origem ou mesmo da mídia na qual são produzidas. Porém eu estava sendo incrivelmente hipócrita no parágrafo anterior.

A bem da verdade é que 98% do conteúdo deste blog é de mangás, e a grande maioria dos quadrinhos que preenchem meu tempo de leitura hoje tem origem no Japão. Mas embora o podcast tenha “Mangá” no nome, este blog não tem possui tal restrição, e mesmo que na minha vida pessoal eu esteja trabalhando na reparação desta citada alienação, no blog ainda estava devendo variar o conteúdo. Pensando nesses dois fatos, percebi que já era mais do que hora deste blog tirar a lupa do Japão e começar a olhar e falar sobre todo o horizonte de quadrinhos existentes, ainda que começando vagarosamente. E que melhor forma que não começar pelo Brasil?

“as coisas que Cecíla fez”, escrito assim mesmo com letras minúsculas, é um quadrinho nacional produzido por Liber Paz, e foi lançada na FIQ de 2013, porém só adquiri a obra este ano (em contato direto com o autor, que vocês podem ter também por aqui). Em suas 60 páginas, ele conta a história de Cecília, mulher comum, esposa, mãe, e que vai ser tomada por memórias quando encontrar por acaso na rua uma pessoa de seu passado.

A sinopse parará aí pois “as coisas…” é daquelas obras que é melhor ser degustada sem saber muita coisa sobre o enredo, pois parte da graça está na descoberta dos acontecimentos, mesmo a história em si não sendo tão complexa e repleta de twists. Na verdade, é exatamente o contrário, é um enredo simples sobre pessoas comuns com conflitos reais, e isso jamais pode ser considerado um problema; essa é a verdadeira força desse quadrinho.

A Cecília que dá nome a obra é uma pessoa comum, igual a dezenas de pessoas que você conheceu na sua vida. A esposa/mãe Cecília do começo da obra viaja para o passado para relembrar-se de uma juventude com inúmeras inseguranças, decepções e aventuras, de uma época que quem é mais velho costuma olhar para trás e pensar que tudo era mais fácil, mesmo que na realidade era um tempo repleto de outras dificuldades que muito significavam na época e que o tempo acaba apagando por ser irrelevante para a grande figura da vida.

Esse olhar contemplativo que temos ao passado de Cecília acaba nos mostrando na verdade o olhar contemplativo do próprio autor para essa mesma época de sua própria vida. Assumidamente uma homenagem e uma recordação de um passado sempre lembrado com carinho, os momentos que “as coisas…” revive da juventude de Cecília trazem juntos muitas coisas do início dos anos 90, repleto de referências e nostalgia de uma época que eu pouco vivi.

Porém independente de uma identificação com essa realidade tratada, algo que o leitor de qualquer idade sempre poderá apreciar é a naturalidade das falas dos personagens. Eu nunca entendi tamanha dificuldade que os produtores de qualquer mídia tem em tornar um diálogo fluído e verdadeiro; ou eles pecam pela formalidade numa realidade sem formalidade, ou por inventar uma linguagem coloquial que utiliza gírias que ninguém falaria na vida real. De qualquer forma, esse erro não é cometido por Liber Paz, que confere uma humanidade única aos personagens, tanto na fala quanto nas atitudes, o que acaba facilitando a nossa aproximação de suas personalidades e seus dramas.

Na história conhecemos uma parte minúscula da vida de Cecília, e no entanto conseguimos descobrir muito sobre sua personalidade. A citada naturalidade de fala afastam a possibilidade de Cecília se tornar uma personagem estereotipada, ou bidimensional. A fuga do óbvio em suas atitudes é um reflexo claro dessa humanização; Cecília não é uma pessoa que existiu de fato (de acordo com o próprio autor), mas é uma personalidade que conseguimos aceitar como real, que é igual a uma pessoa que o leitor pode ter conhecido um dia qualquer em sua vida, e jornada de redescoberta dela se torna tão fascinante pro leitor quanto é ouvir um grande amigo contar uma história até então desconhecida de seu passado. (E neste ponto, eu adoraria poder falar sobre o final da obra, mas me conterei em respeito a quem não leu)

A parte visual da obra é repleta de personalidade. As escolhas de traços finos para delimitar os rostos e as expressões dos personagens, o uso intenso do preto e branco extremos, os contornos largos… tudo isso confere uma personalidade única a “as coisas que Cecília fez”. É perceptível que Liber Paz está bastante confortável nesse estilo próprio que desenvolve, mas também é perceptível os ângulos de rosto favoritos do autor, que acabam sendo repetidos com frequência na obra. Mas concederei isso como uma escolha artística.

O quadrinho é impresso no formato brochura e tem dimensões bem grandes. Particularmente acho que uma ligeira diminuição na altura e largura, e uma pequena lombada deixariam a impressão mais bonita e bacana de colocar na estante, mas é o meu eu colecionador se apegando a detalhes.

A quem se interessar ler a obra, é possível adquiri-la pelo link que passei ali em cima, conversando diretamente com o autor, ou pegar a versão digital do Mais Gibis.

Avaliação Final

4 comentários

  1. Fiquei tão interessado na obra que já fiz o pedido dela com o autor,assim que ela chegar deixo minhas impressões aqui.
    Obrigado pela recomendação.

    • Chegou meu exemplar e vou deixar meu feedback aqui:
      Gostei muito da estória,é bem rápida e envolvente,dramática e alegre no ponto certo.
      Valeu muito a pena ter comprado,tem uns questionamentos profundos e tem um final bem agradável,o unico ponto negativo fica pro desenvolvimento meio “corrido”;como um todo uma boa Hq.

  2. Eu tenho e recomendo, é muito gostosinho.
    No site do autor tem ele selecionou uma trilha sonora pra se ouvir com Cecília. Ainda não testei, mas logo o farei.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.