Os Efeitos da Periodicidade em uma Obra

De uma forma geral, como é de conhecimento da maioria dos leitores de mangá, as obras são lançadas originalmente no Japão em antologias que trazem um capítulo da série por edição. Essas antologias possuem diversas periodicidades diferentes (semanal, mensal, bimestral, trimestral, sazonal, etc). E um ponto interessante de ressaltar, e que muita gente não percebe, é que essa periodicidade influencia diretamente no ritmo, forma, narrativa e arte da obra em questão. Como? Vamos tentar analisar isto aqui.

Ah, mas antes de tudo, é sempre bom deixar claro que para tudo no mundo há exceção (uma ou muitas). Portanto, podem existir casos que não se encaixam nos pontos analisados. Isso é normal e até esperado, mas é sempre bom avisar.

Outro ponto importante ressaltar é que o foco deste texto será em duas periodicidades: semanal e mensal. Sei que existem outras revistas que lançam com outras frequências; para esses casos, tente imaginar proporcionalmente os pontos analisados. Para uma série quinzenal, entenda como um intermediário entre semanal e mensal; bimestral como o “dobro” da mensal e assim por diante.


No podcast de antologias shonen da Kodansha, citei que a demografia não diz absolutamente nada sobre a obra que faz parte dela, e no entanto conseguimos definir muitas características das obras com base na revista em que ela sai. Algo que não foi citado é que podemos tornar esse fato mais amplo, e podemos, com um pouco de análise, perceber que a periodicidade de uma obra também diz muito sobre ela, mas de forma mais genérica. Existem vários aspectos passíveis de análise nessa questão, mas eu preferi focar em três pontos apenas: número de páginas, tempo e custo/preço. (clique nas imagens que quiser ampliar!)

Número de Páginas

A primeira diferença mais chamativa entre obras em periodicidades diferentes é o número de páginas por capítulo. Enquanto numa obra semanal, o normal são entre 17 e 20 páginas, numa obra mensal costuma ser acima de 30. Aqui é o ponto onde provavelmente existem mais exceções a regra, mas costumam ser casos bem pontuais; D.Gray-man, por exemplo, costuma ter por volta de 20 páginas, mesmo sendo mensal, por conta da saúde da autora; outros autores, como o de Vinland Saga, optam por fazer menos páginas que o normal, para poderem se focar no detalhismo de cada página.  Há também o caso dos gags semanais, que tem por volta de 9 páginas. Cada caso é um caso, mas a via de regra é que mangás mensais costumam ter mais páginas por capítulo que mangás semanaisE isso afeta muita coisa.

Diferença no detalhismo do traço semanal para mensal em Vinland Saga

Um engano bastante comum de se cometer é achar que um capítulo mensal “equivale mais ou menos a dois capítulos semanais”. Não se engane: um capítulo mensal equivale a um capítulo semanal, com a diferença que ele é “feito com calma”. Em um mesmo capítulo, a narrativa normalmente se inicia de forma lenta e explicativa (relembrando o capítulo anterior ou apresentando novos acontecimentos), e vai se construindo os acontecimentos lentamente, aumentando a relevância das páginas conforme o capítulo avança. Pode perceber: nenhuma terceira ou quarta página de um capítulo é uma página memorável de uma obra. Isso porque nessa parte da narrativa o roteiro ainda está sendo construindo e preparado para o clímax do capítulo. Esse clímax costuma aparecer no terceiro terço do capítulo; pra um mangá semanal, é lá pra página 15, e pra um mensal, perto do 27. Inclusive normalmente é perto dessa parte que as “páginas memoráveis se encontram”.

O clímax é um acontecimento relevante , ou um conjunto de acontecimentos relevantes mas ligados intrinsecamente. Aí que está a questão: se o mangá mensal era pra equivaler a dois capítulos semanais, logo era pra possuir dois “clímaxes”, mas não é isso que o ocorre. Em um capítulo mensal, o que ocorre é uma construção mais lenta e uma preparação maior para o ápice do capítulo que virá. Isso resulta em uma sensação de passo mais lento, e aprofundamento maior da história. Um capítulo semanal tem o efeito contrário: aparenta ser mais frenético, que as coisas acontecem mais rápida e abruptamente. Sabe quando você pega um volume de um mangá semanal, nele tem vários acontecimentos e você lê ele voando? E quando você lê um volume de um mangá mensal e ele parece ter um ritmo lento e tranquilo? Pois é.

Clímax na penúltima página

Esse citado “clímax” é necessário pra um capítulo? Não, ele não é necessário; ele é essencial! Estamos tratando aqui de antologias de mangás, uma mídia transitória e descartável. Muitas pessoas irão ler a obra com pressa e totalmente descompromissadas; se tiverem a sensação que não está acontecendo nada numa obra, elas simplesmente pararão de ler. O autor tem que, a cada edição de sua revista, fazer um capítulo que consiga atrair um leitor novo casual e, ao mesmo tempo, lembre o leitor antigo do motivo dele gostar da obra. Para isso, ao menos um acontecimento relevante, um “ápice”, um fato relevante, é obrigatório para um capítulo de mangá, não há como fugir muito disso.

Assim, proporcionalmente, o número de páginas de “construção e preparação” é maior em um mangá mensal, e isso reflete no ritmo de leitura não só dos capítulos como do volume encadernado também. Essa característica específica é bastante visível em romances, principalmente shoujo; muitas vezes temos a impressão que nada acontece em um volume inteiro, mas na verdade é que tivemos poucos “picos” de relevância, ao passo que temos muitas páginas de preparação. Ou seja, o ritmo da narrativa, que é uma das bases fundamentais da história, enredo e evolução do que está sendo contado, acaba sendo ditado totalmente pelo número de página em cada capítulo. E veja só, o número de páginas é determinado justamente pela periodicidade!

Tempo

Existem dois aspectos do “tempo” que afetam bastante o desenrolar de uma série. São eles tempo entre capítulos e tempo de publicação.

O tempo entre os capítulos de um mangá é o tempo que o autor tem pra planejar a obra, fazer o storyboard (ou “name”), conversar com o editor sobre possíveis alterações e aí sim fazer a arte final. E não há dúvidas que quanto maior o tempo para trabalhar, melhor será o resultado final, em vários aspectos. Um enredo pode ser melhor planejado para se evitar furos, ou mesmo para melhorar as passagens e os acontecimentos previstos; além disso, há mais tempo para se dedicar à arte da obra, melhorar o detalhamento, etc.

Escala semanal do autor de Nurarihyon no Mago

Para ilustrar, vamos pegar por exemplo um autor semanal com 18 páginas por semana, e um autor mensal com 35 páginas, supondo que nenhum deles trabalhe em mais de uma obra ao mesmo tempo (e que fique claro que aqui vou desconsiderar várias variáveis para tornar tudo simples aqui. Ignorarei, por exemplo, primeiros capítulos com mais páginas que o normal, qualquer capítulo extra, e tantos outros). O autor semanal tem mais ou menos 1/3 de dia (algo como 8 horas) para trabalhar cada página (supondo absurdamente que ele só faça isso, nem descanse, é meramente ilustrativo), enquanto o mensal tem mais ou menos 4/5 de um dia (19h) para dedicar a cada página. Mesmo aplicando-se tempos de descanso, para trabalhar em páginas coloridas, e outras “pausas”, a proporção deve manter-se, e assim o autor mensal tem mais que o dobro do tempo para planejar cada página que faz. E para pessoas bem intencionadas, mais tempo significa que o trabalho final será melhor trabalhado, melhor acabado e desenvolvido com mais calma e ponderação (já algumas outras pessoas, fariam em 19h a mesma coisa que fazem em 8h, mas procrastinariam mais, mas desconsidero essas).

Por outro lado, esse aspecto reflete no número final de páginas em um mesmo período. No mesmo exemplo anterior, o autor semanal terá 72 páginas em um mês, enquanto o autor mensal terá as citadas 35. Isso vai refletir principalmente em duas coisas: a velocidade de lançamento de volumes encadernados (discutirei no próximo tópico) e no tempo que uma história demora para avançar.

6 anos, 33 volumes

Essa segunda característica tem um aspecto interessante, que entra no segundo ponto que citei no começo deste tópico (tempo de publicação). Se pegarmos os mesmos dois autores e projetarmos ambos para 5 anos de lançamento (e considerando 48 semanas por ano, por conta dos feriados tradicionais), a obra semanal terá por volta de 20 volumes, enquanto a mensal terá perto de 10. No entanto, ambos terão 5 anos trabalhando numa mesma coisa, em publicação incessante, com poucas pausas e muito provavelmente (dependendo da revista) rumando para terminar sua obra.

9 anos, 27 volumes

Não entrarei ainda no mérito do aspecto econômico, mas sim na projeção do tamanho de narrativa: se os dois autores planejaram esses 5 anos, ao final teremos duas histórias com tamanhos muitíssimo diferentes. Quando um autor mensal planeja 5 anos, ele planeja 10 volume; o semanal planeja (quando planeja) 20. Esse fator vai afetar a obra de diversas formas, principalmente a narrativa; quantidade de arcos “filler” (arcos com pouco avanço de enredo, como citei brevemente em outro post), tamanho de cada arco, quantidade de arcos no total… O autor mensal, por exemplo, não pode se dar ao luxo de dedicar um arco inteiro ao desenvolvimento de um personagem secundário, ou um dos clássicos “arcos de treinamento“. De maneira geral, a série mensal vai ser muito mais objetiva, sucinta, direta e focada que a série semanal, pois tem menos espaço para perder com essa “perfumaria” da obra.

Custo/Preço

Essa parte não afeta tanto a obra em si, e sim o impacto econômico dela. Seguindo o mesmo exemplo acima, podemos ver que a frequência de volumes de um mangá semanal é quase o dobro de um mangá mensal. Muita gente vai pensar que sair volumes mais rápidos é melhor pra editora e portanto semanal é melhor negócio para a editora; mas isso é besteira. O que se precisa avaliar aqui não é a frequência dos volumes, e sim a quantidade final; em teoria, quanto mais volumes, mais vendas, e aí sim mais dinheiro pra editora. A diferença é que a obra mensal dará esse retorno em um prazo mais longo que a semanal.

Pelas avaliações do tópico anterior, fica claro que a obra semanal tende a ter mais volumes que a mensal, e isso pode ser um ponto à favor da periodicidade semanal em termos de atenção e dedicação da editora. E também deve-se pensar que, num mundo tão preenchido e com tantas opções como é o mundo dos mangás no Japão, uma obra que sai mais rápido também se fixa melhor na mente e gosto do leitor, portanto não é de se estranhar que a editora dedique mais tempo e atenção para divulgar e vender a história semanal para o público e/ou estúdios de animação. Tanto por isso que os maiores vendedores de volumes no Japão, em sua maioria, são semanais. (atentem-se que não citei qualidade em nenhum momento deste ponto).

Quando o dinheiro mensal não dá… ou dá?

Também sabemos que um autor é recebe dinheiro não só pela participação nas vendas dos volumes, como também por página produzida. Não sabemos quanto é esse valor efetivamente e se varia de autor semanal pra mensal (minha teoria é que varia apenas pela experiência do autor), mas no saldo final, não precisa ser um matemático para perceber que o dinheiro entra muito mais rápido no bolso do autor semanal que do mensal. Isso pode resultar em um autor mensal precisar trabalhar em mais de uma obra ao mesmo tempo pra compensar financeiramente. É uma possibilidade, mas isso bagunçaria toda a lógica dos outros fatores que citei, e portanto ignorarei isso. E aqui também encerro a análise.

Conclusão

Acho que a maioria dos posts deste blog são voltados principalmente para tentar chamar uma atenção melhor para os mangás, e formar um público de mangá um pouco mais embasado e crítico. Esse post tem justamente esse objetivo: ao apresentar esses fatores que são relativamente óbvios quando se pensa no tema mas que a maioria das pessoas não percebe por não considerar relevante, o esperado é que o leitor comece a perceber tais características e possa, dessa forma, entender melhor um pouco essa mídia que é o mangá.

Vale ressaltar que esses fatores por si só não afetam a qualidade da obra; um bom autor vai saber fazer um bom trabalho com o tempo que tiver disponível, mas é importante perceber o quanto a periodicidade diz sobre a obra, e quais tipos de características você pode esperar ao se deparar com obras de cada periodicidade. Isso não vai fazer você gostar mais ou menos de uma obra, mas ajudar a entender o porquê dela ser como ela é e, talvez, conseguir entender algumas decisões que o autor tomou ao longo da sua narrativa.

As obras mensais tem suas vantagens e desvantagens, bem como as semanais, e entender esses pontos podem ajudar ao leitor a estar preparado e possivelmente aprender a julgar a obra por o que é ela. Como assim “julgar pelo que ela é”? Bom, isso é tema pra outro post.

8 comentários

  1. Olá!
    Não é a toa que One Piece só cresce no meu conceito a cada novo fator que eu aprendo do mundo dos mangás. Cara, obrigado! Que postagem incrível! Adorei, muito bom mesmo. É sempre bom ficar ainda mais por dentro de um assunto que vc gosta.

    Até and Bye…

  2. Excelente post, parabéns.

    Um mangá que eu acho que está na periodicidade errada é Ao no Exorcist, a estrutura dos capítulos é igual a de qualquer mangá da Jump, só que demora um mês pra sair, pra mim isso só vai atrasar o desenvolvimento do mangá, ao contrário de outros títulos da SQ que são melhor trabalhados.

    E aquela conta de horas por página é assustadora. Só de pensar que mangakás como o Oh Great e o Hiro Mashima conseguiram ficar um bom tempo publicando um mangá semanal e um mensal ao mesmo tempo é surpreendente.

    • Concordo, mas precisa pensar que esse é o trabalho deles, portanto fazem isso quase que o dia todo, como qualquer trabalho mais puxado. A diferença é que eles trabalham sempre que estão acordados, já que estão sempre pensando na história, nos diálogos, e tudo que pode ser pensado, mesmo sem papel e caneta na mão. Mesmo assim é muito puxado mesmo! Precisa de uma dedicação muito grande e gostar do que faz. Mesmo que com o tempo as coisas fiquem mais fácil pela experiência, o detalhamento deve aumentar com a qualidade do desenho, portanto deve ficar cada vez mais difícil (seria esse o motivo da perda de detalhes e realismo no traço de Bakuman?). Ah, e você falou “Jump” e “SQ”, mas a SQ também é Jump, você devia estar se referindo a Weekly.

  3. Ótimo post, como (quase) sempre. Eu estou tentando me aventurar no mundo de quadrinhos e mangás como roteirista. Tenho um parceiro que desenha, portanto, é mais fácil na questão do tempo gasto em cada página. Eu tenho uma ideia para uma série que estou desenvolvendo mais fortemente (além de outras coisas paralelas) e nunca tinha pensado em que tipo de revista ou a periodicidade. Dependendo disso, é necessário mudar a apresentação dos fatos, dos personagens, etc., já que não se pode juntar 2 capítulos, tendo um fechamento (mesmo que tenha gancho) e seguir o capítulo normalmente, isso causaria um problemas de clima. O post me ajudou a pensar mais nisso, muito obrigado.

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