A Hora Certa pra acabar

(ou “Sobre Finais Insatisfatórios”)

Existem diversas histórias planejadas para durarem 1, 2 volumes. Normalmente esse tipo de história já tem o seu enredo (e possivelmente storyboard) completamente planejado, pois o final é palpável, e o tamanho final já está dentro do previsto.

No entanto, séries com mais volumes normalmente são serializadas em antologias periódicas, e portanto não possuem a possibilidade de um planejamento completo do desenvolvimento do mangá. E é aí que mora o problema.


A começar primeiro quero destacar e deixar de lado os mangás essencialmente de comédia; eles são por definição altamente episódicos, com pouco avanço de enredo por natureza e normalmente encerram-se quando querem. Eles são casos específicos. Mas fora essa categoria, qualquer mangá mais longo está sujeito a cair em diversas armadilhas estruturais, temporais e narrativas que acabam jogando contra à série, e possivelmente resultam em uma conclusão pouco satisfatória para a mesma. Nessa questão, encaixam-se todos os tipos de mangás: ação shonen, romance shoujo, slice of life seinen, ninguém está salvo.

Sem propósito na vida...
Sem propósito na vida…

Inicialmente, um final pouco satisfatório não surge por acaso; ele é construído ao longo do mangá todo, e tem muitas origens. O principal e o primeiro dos problemas que ocasionam isso é a ausência de foco. E muitas vezes a dificuldade de um autor manter-se fiel à um enredo central ocorre por um problema conceitual do mangá: a falta de um enredo central, ou melhor dizendo a falta de um objetivo. Assim como na vida (acadêmica, profissional) nós trabalhamos com metas, objetivos, prazos, etc., os mangás também trabalham dessa forma; aliás, deveriam. Não é incomum vermos séries que não tem um objetivo final e determinado para seu término: Bleach, Dragon Ball (embora iniciando como comédia, com o tempo migrou para ação e ainda assim não ganhou objetivo), Katekyo Hitman Reborn! (idem ao Dragon Ball), Fairy Tail, Crows… Existem muitos outros também, mas ilustrativamente esses são exemplos claros de mangás que não tem um objetivo final, um foco, um “vilão final”, um conquista a ser realizada; possuem uma premissa, uma ambientação e pronto, a história gira em torno disso. Mas atente-se que essa ausência de objetivo não é uma garantia de que a história é ruim; aliás, nenhuma das características citadas neste post serão essencialmente ruins, mas são caminhos perigosos de se tomar.

Às vezes a série possui foco, mas ele acaba sendo esquecido, deixado para trás, conquistado prematuramente, ou é amplo demais para dar um rumo. Talvez Dragon Ball se encaixe melhor neste quesito (buscar as esferas do dragão era de certa forma um objetivo “final”); Naruto é outro exemplo, com o foco de “seguir a vida de Naruto para se tornar um Hokage”, que é altamente vago, não diz o que precisa ser feito para se atingir esse objetivo. Kokou no Hito, que já falei algumas vezes aqui (e o Judeu Ateu fez uma resenha), também tem como premissa inicial acompanhar a vida do protagonista. Algumas séries acabam dando um objetivo mais direto conforme a série avança (Mori quer conquistar a face leste da K2, Naruto quer salvar Sasuke), mas outros acabam por se distanciar do pequeno foco inicial que tinha (Dragon Ball).

Não precisava.
Não precisava.

A falta (ou a fraqueza) do foco leva diretamente a outro problema: arcos desnecessários, embora isso não é exclusividade de mangás sem foco final. Pode-se dizer que um arco desnecessário é algo semelhante ao que ocorre no cinema: uma cena desnecessária num filme é toda cena que não possui função narrativa alguma, não serve para ambientar, não serve para apresentar melhor os personagens, nem serve para avançar o enredo da história; do ponto de vista narrativo, é inútil. Assim, em um mangá, um arco que não possui um propósito claro para a narrativa é um arco inútil.

Verdade é que não são muitas histórias que possuem arcos assim. Isso porque os autores sempre colocam alguma pequena pista, algum pequeno fato (na maioria das vezes, próximo do final do arco), apenas para justificá-lo como útil. Skypiea, em One Piece, é um bom exemplo: um arco inteiro bem longo para fazer uma ou duas revelações de fatos importantes pro enredo (polygriph e apresentação dos dials); não aprendemos mais sobre os protagonistas, não aprendemos quase nada sobre a viagem ao objetivo final, personagens novos só são utilizados dentro do arco e depois somem, etc. Também é assi com 80% dos arcos de Fairy Tail, ou aqueles diversos pequenos probleminhas que ocorrem em mangás de romance. Atente-se novamente que irrelevante não é sinônimo de ruim, no entanto ele deixa uma.. ausência de sabor quando termina, independente de ser legal ou não.

Mas e aí? O que isso tudo tem a ver com o tema do post? De forma direta, tem tudo a ver. Arcos pouco relevantes podem ser divertidos, podem ser legais de se ler, mas em muitas vezes denotam duas coisas problemáticas: falta de planejamento dos autores, e o fato deles extenderem demais suas obras.

Hades é o deus mais forte do Olimpo... certo?
Hades é o deus mais forte do Olimpo… certo?

Embora seja ótimo sua série preferida sendo lançada regularmente, com algo sempre novo para se ler, ao começar-se uma história, o esperado é que ela seja boa do começo ao fim. E para isso, necessariamente precisa ter um fim! E quando não há fim programado, o fim está distante, ou não está claro, arcos irrelevantes normalmente agem CONTRA a série. Isso é particularmente mais claro em Shonens. Não tenho dúvida: aposto que em suas séries preferidas shonen você consegue citar 2 ou 3 arcos de histórias que você preferia que não tivessem sido feitos, pois não trazem nada de realmente legal e importante à história. Outra coisa que aposto é que alguma série possuiu um final que não te satisfez; mas não porque o mocinho não ficou com a menina que você gostava, e sim porque você acreditava que podia ter acabado antes, ou explicado melhor algumas pendências.

No caso da Shonen Jump, Shone Sunday ou qualquer revista que tem cancelamentos periódicos e constantes, a situação complica ainda mais, pois o autor tem que fazer de tudo para manter sua história “viva“, resultando no surgimento de acontecimentos não previstos inicialmente pelo autor no mangá, que só estão ali como reação à popularidade. Isso ocorre nas séries de sucesso mediano, mas quando vemos séries populares, temos o problema de séries alongadas para aumentar o tempo de publicação, causando também possíveis enrolações, arcos irrelevantes, extensões exageradas de arcos relevantes, etc.

Abrupto, mas ótimo
Abrupto, mas ótimo

Os finais insatisfatórios são insatisfatórios também por outras questões. Uma das principais são finais “incompletos, com “pendências“. Existem, claro, certas tipos de finais que utilizam-se de assuntos em aberto para fazer o leitor pensar por si só, imaginar certos fatos por conta própria. Esse é um recurso muito comum em qualquer tipo de mídia, seja filmes, livros (teria Capitu traído mesmo o Bentinho?), e não é diferente com os mangás. E mesmo alguns finais mais abruptos (Slam Dunk, por exemplo) possuem um porquê e um propósito.

Mas como sabemos que as “pontas soltas” são intencionais ou não? Aí que está: não sabemos! No entanto, podemos fazer diversas suposições, baseadas tanto nas lógicas criadas dentro da própria história como ao caminho tomado pelo enredo. Um exemplo ilustrativo é Battle Royale; ao final, todas as pontas foram fechadas, tudo que era relevante e essencial pra história foi explicado; algumas questões relativas ao destino dos protagonistas não ficam claras, mas é uma “ponta solta” proposital, pois a intenção é deixar que nós leitores imaginemos o que se sucedeu ao mangá (e é por isso que muitas continuações acabam por “trair” sua série original, ao escancararem o final do mangá original). Por outro lado, o final de Shaman King (o “segundo” final, que saiu nos volumes Kanzenban) deixa algumas questões mal explicadas, alguns acontecimentos que não se justificam (sim, sabemos que não é totalmente intencional, principalmente dado ao caso específico do encerramento prematuro da série e posterior final com espaço limitado para desenvolvimento).

Terminando na hora certa.
Terminando na hora certa.

Sabendo-se de todos esses problemas, a grande questão que fica é: quando é a hora certa de terminar uma série? Muitas pessoas diriam “quando o autor quiser, ora!”, mas não é só isso. Nem sempre um autor sabe quando tem que parar; alguns extendem a história demais, outros acabam prematuramente, deixando questões essenciais em aberto. Assim sendo, o caminho mais racional é que a hora certa pra acabar uma série é quando todas as questões estão resolvidas (ao menos todas as que eram necessárias serem resolvidas), todas as pendências foram explicadas, e o objetivo final foi alcançado (ou não foi satisfeito, pois nem sempre há um final feliz), salvo os “mistérios” intencionais do autor. Por isso não ter um objetivo, não ter foco, criar arcos desnecessários que apenas criam pontas que jamais serão fechadas, fazem a “hora certa para acabar” ser colocada sempre num futuro que nunca chega (ou num passado ultrapassado pela obra).

Finais diferentes que não tem essas características citadas são sempre ruins? Cada caso é um caso, mas de forma geral, sim. Pode perceber: finais que passam pelo objetivo final original e tentam continuar com outro objetivo, ou finais que chegam antes de algumas explicações, ou finais abruptos sem necessidade… o final em si acaba sendo decepcionante. Isso não desmerece de forma alguma o resto da obra; bons mangás como Eyeshield 21, Hokuto no Ken, Planetes, Frankenstein (de Junji Ito, comentado no podcast da Mangagrafia do autor) possuem finais não tão satisfatórios, mas ainda são ótimas obras. Sugiro que pense nas obras cujo final não te satisfez e veja se algumas das características citadas estão ausentes. Provavelmente estarão.

Assim, não há uma fórmula mágica, mas há alguns “pré-requisitos” desejáveis para um final satisfatório. Quais outros pré-requisitos são necessários? Não sei, vocês que me digam (aí nos comentários).

E digo mais: garanto que o final deste texto não foi satisfatório.


PS: Uma das motivações deste post veio por tanto ver pessoas falando “Ah, não quero que o mangá X termine! Gosto dele!”. Pessoalmente, se você gosta mesmo de um mangá, tem que apenas desejar um ótimo final no tempo certo pra ele, não a extensão da série. Nem sempre abordar mais coisas fora do escopo inicial vai fazer bem pra série.
Ame e deixe morrer!
(A outra motivação foi este post do blog Mangathering).

Por Guilherme “Estranho”

10 comentários

  1. Texto bem interessante, como todos do blog.
    Muito do que você citou são coisas em que eu poderia ter me aprofundado no post que fiz, só que acabei não citando…
    Mas acho que é basicamente isso, uma série pode ter um final aberto, mas isso tem que ter um motivo, uma razão de ter terminado assim, ter uma “mensagem” por trás disso.

  2. “Ame e deixe morrer!” é duro, mas é a absoluta verdade! Não há nada pior do que ver aquele mangá que você gostava perder totalmente o rumo após ser alongado desnecessariamente …

    Ótimo post!

  3. Eu li somente 3 mangás do início ao fim até hoje (os que eu acompanho não fazem o favor de acabar ¬¬): Death Note, Psyren e Fullmetal Alchemist.

    Death Note segundo alguns fãs poderia acabar depois da morte de L, mas na minha opinião não seria um final tão bom, já que deixaria aquele gostinho de “o mal venceu” na boca (algo que dificilmente aconteceria em um shonen, ainda mais na Shonen Jump). Por isso a “saga” Near e Mello foi necessária e concluiu satisfatoriamente Death Note.

    Psyren teve um final corrido por causa do cancelamento, mas ainda assim, o final foi bem feito e dentro do limite de capítulos que a autora tinha, aceitável.

    Fullmetal Alchemist foi… Perfeito. Me pareceu que a Arakawa tinha tudo planejado desde o início e é um mangá que eu vou me lembrar pra sempre. E além da história ser praticamente moldada pra acabar logo devido ao seu enredo, a autora teve “sorte” em dois pontos: o primeiro foi a série ser de uma editora pouco expressiva, a Square Enix e o segundo ser uma série mensal, onde não é possível “enrolar” tanto quanto em uma semanal.

  4. Quanto à arcos desnecessários, One Piece chega a irritar e Skypiea e Davy Back Fight podem ser simplesmente jogados no lixo, enquanto todos, TODOS os outros arcos dessa série podiam ser reduzidos a 70% do seu tamanho, sério mesmo, Oda enrola demais e o último arco (Ilha dos Tritrões) poderia ser resolvido bem mais rápido, com flashbacks sendo encurtados e tritões de Hodi sendo mais rapidamente derrotados.

  5. Estou conhecendo o blog agora e realmente curti muito o post!! Infelizmente é verdade que muitos mangás se perdem em arcos pouco úteis. Acho que Fairy Tail seria um mangá melhor se fosse mais objetivo e com um objetivo definido, mas cai no problema do planejamento. No fim de um dos volumes de Fairy Tail, o próprio Mashima diz que nao esperava que o mangá realmente vingasse e durasse tanto. Desse comentário, já se deduz que não havia um planejamento para um mangá longo, motivo pelo qual, na minha opinião, a historia acaba se perdendo um pouco. Já o Oda consegue bolar boas e criativas conexões entre as sagas, além de One Piece ter um objetivo final bem definido (que Ruffy se torne o rei dos piratas) , o que faz a historia, apesar de longa, ter qualidade e prender o leitor.

  6. Post legal. Acho que a definição de inutil, ou desnecessário é meio complicada. Fazendo uma analogia com a vida, fazemos várias coisas que não tem um proposito claro no final (quase tudo), mas não quer dizer que seja inútil.
    Um arco que não tem relação com o fim da obra pode simplesmente ter algum momento legal e inspirador pra alguem em alguma parte. Rokudenashi BLUES é extremamente episódico no início, e tem várias histórias q “poderiam” ser cortadas, mas cada uma tem um sentimento, uma importância, na minha opinião, mesmo que não levem a nada no fim do mangá.
    Acho que o problema é mesmo com a queda de qualidade, como por exemplo em Bleach. Mas aí entra outro conflito, por que Bleach tinha muito pano pra manga, tendo em vista que o autor nem havia explorado os hollows direito ainda (que deveriam ser os viloes de verdade). A pena é que o autor não soube trabalhar bem e criar novas experiencias com tudo o que tinha pela frente.
    Outro exemplo é Berserk, (que neste caso a qualidade continua ótima) pois apesar de ter feito algo tão incrivel como a era de ouro e ser muito dificil superar isso (eu acredito que ele pode, no final), não faria o MENOR sentido acabar o mangá lá, aí é segurar as pontas e mostrar q não é um autor qualquer.
    Gostei do exemplo de Battle Royale, q é um dos finais mais “certinhos” que já vi, assim como Samurai X. E amo o fim de Hokuto no Ken, o problema é a saga anterior ao fim.

  7. Slam dunk tem um final incompleto, porém, eu acho q o objetivo do autor era mostrar, além de tudo, que o basketball é apaixonante, a ponto de levar um deliquente pras quadras.

    Na hora q o Sakuragi sai da quadra, com as dores nas costas e tal, e fala pra haruko que ama basket, ali o mangá já teve um fim ( pra mim é claro).

  8. Apesar de eu ter ficado “chocado” com o fim de Slam Dunk. O final é bacana. Alem do spoiler soltado acima pelo amigo, considero q o jogo “final” mostra que com trabalho de equipe pode-se ganhar até do mais forte.

    Mas eu discordo sobre a legenda na foto de CDZ: Nao é mencionado em momento algum q Hades é o deus mais forte do Olimpo. É mencionado que Hades “é da mesma altura q Poseidon e Zeus”.

    Thanatos ou Hypnos, um dos dois fala isso. Algo como “E pensar que consideramos Poseidon da mesma altura que sua majestade Hades e Zeus”

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